20 de out de 20225 min

Os fósseis do Araripe e sua importância para a compreensão da evolução do Atlântico Sul

Por Maria Luiza R Coutinho

Fósseis são vestígios ou restos de organismos preservados em rochas, gelo ou âmbar que viveram há mais de 11 mil anos. E para esse processo de fossilização acontecer, não é tão fácil! Existiram muitos organismos que não deixaram seu registro fóssil. Imagine quanta biodiversidade a gente nunca vai conhecer por conta disso!

Mas como acontece a formação dos fósseis? Já vou adiantando que a fossilização depende de inúmeras variáveis e que não acontece da noite para o dia.

Rotineiramente, quando um indivíduo morre, seu corpo serve de alimento para outros, e ocorre o processo de decomposição. Nesse caso, os tecidos moles são consumidos e, no caso de um indivíduo de esqueleto mineralizado, pode (mas nem sempre!!) ocorrer a fossilização dos ossos, conchas ou dentes. Ela se inicia através do soterramento com sedimentos finos para que todas as lacunas sejam preenchidas e preservadas. No caso de condições de rápido soterramento, pode-se evitar a decomposição dos tecidos moles e desarticulação dos ossos, formando ótimos fósseis.

Então, em qualquer lugar em que o organismo morre, ele pode ser fossilizado? Não!

Algumas condições ambientais podem facilitar o processo, como anoxia (lugares com oxigênio reduzido em mais de 95%), baixa energia, hipersalinidade e alta taxa de deposição de sedimentos. Após o soterramento, há um conjunto de alterações físico-químicas, onde os restos orgânicos e os sedimentos adjacentes são compactados até que ocorra a litificação, ou seja, a formação de uma rocha. Até aqui já se passaram milhares ou milhões de anos! Veja na imagem abaixo como funciona esse processo:

Ilustração de como acontece o processo de fossilização em quatro momentos. No primeiro momento, temos dois dinossauros mortos sob uma depressão no solo. No segundo, houve uma ingressão de água no mesmo local, formando uma laguna. No terceiro já se passaram alguns milhares ou milhões de anos, a água secou e sob os restos dos dinossauros, foram depositadas outras camadas sedimentares. No último momento, mostra alguns pesquisadores fazendo escavações e encontrando os fósseis dos dinossauros. Fonte: Aline M. Ghilardi (CC 4.0 -BY-NC-ND)

E onde os fósseis podem ser encontrados? A grande maioria dos fósseis é encontrada em bacias sedimentares. Cerca de 60% do território brasileiro é composto de bacias sedimentares, o que faz do Brasil um país com alto potencial para encontrar fósseis (confira na figura abaixo onde elas se localizam). Elas são áreas topograficamente deprimidas, onde há intensa sedimentação em estratos formando rochas sedimentares. Esses estratos, também chamados de Formações, representam as condições do paleoambiente durante o evento deposicional. Logo, são importantes para o estudo da evolução da Terra, contando a história dos inúmeros processos que levaram à atual estrutura geológica e biológica do planeta. À medida que se acumula sedimento nesses imensos “buracos”, o peso das mais novas camadas vai compactando e transformando os sedimentos em rocha e os restos de organismos que ficam entre esses sedimentos vão, então, fossilizando.

Mapa de localização das bacias sedimentares brasileiras. Fonte: Aline M. Ghilardi (CC 4.0 -BY-NC-ND)

Os fósseis brasileiros são considerados Bens da União de acordo com a Constituição Federal de 1988. Isso significa que são protegidos por leis, ou seja, não podem ser vendidos, devendo ficar sob guarda de instituições de pesquisa, ensino e museus e a coleta, quando feita por pesquisadores, deve ser comunicada à Agência Nacional de Mineração (ANM). Mas apesar disso, ainda há muito contrabando.

Mas, agora, vamos falar um pouco sobre os fósseis da bacia sedimentar do Araripe, que fica longe do atual mar, mas que contam a história de um mar há 110 milhões de anos.

Há 100 milhões de anos a América do Sul e a África já tinham se separado totalmente. No meio, nasceu o Oceano Atlântico. Mas antes de estarem totalmente separados, havia barreiras físicas que impediam a conexão entre o Atlântico Sul e o Norte. Durante os avanços da deriva continental, houveram também diversas ingressões marinhas que formavam paleolagunas de águas salobras no interior do continente. Uma delas é onde, hoje, estão as regiões do Araripe e do Cariri. Estudos realizados mostram que a transgressão marinha ocorrida durante o Mesocretáceo foi a maior dos últimos 250 milhões de anos, chegando a 300 metros acima do nível atual, atingindo o interior do continente, formando mares epicontinentais. No auge da transgressão, o mar interior conectou, temporariamente, os oceanos Atlântico Norte e Sul antes da separação total dos continentes e há muitas hipóteses de como se deu esse caminho do mar.

Ilustração de como era o ambiente deposicional da Formação Romualdo na Bacia do Araripe. Fonte: Aline M. Ghilardi (CC 4.0 -BY-NC-ND)

A Bacia Sedimentar do Araripe está situada no interior nordestino brasileiro, entre os estados de Pernambuco, Ceará e Piauí, sendo um dos três mais importantes sítios paleontológicos do mundo. A região guarda inúmeros fósseis de peixes (ictiólitos), insetos, dinossauros, plantas, invertebrados, pterossauros e outros. Deixa eu te contar o porquê dessa importância toda… A Formação Romualdo é a mais famosa dentre as formações da bacia por conter a maior quantidade e diversidade de fósseis com excepcional preservação. As condições para o processo de fossilização da Formação eram diferenciadas, o ambiente era super favorável: anóxico, de baixa energia e altíssima taxa de sedimentação; fazendo com que não houvesse deslocamento ou desarticulação do indivíduo após a morte.

Há, também, a formação dos chamados nódulos calcários com fósseis que são muito recorrentes na Formação Romualdo. O processo de fossilização dos nódulos é conhecido como Efeito Medusa por ser super rápido, assim como o mito conta que bastava um olhar de Medusa para que tudo virasse pedra. Alguns pesquisadores afirmam que o processo acontecia em questão de horas. Veja abaixo como era o processo de formação dos nódulos:

Ilustração de como acontecia o processo da formação dos nódulos calcários da Formação Romualdo. Fonte: Aline M. Ghilardi (CC 4.0 -BY-NC-ND)

Muitos fósseis do Araripe contém tecidos moles preservados, como escamas, coração e músculos. Imagina aí? Esse tipo de preservação excepcional é chamada de Lagerstätten e está presente não só na Formação Romualdo, mas também na Formação Crato e é raríssima! Na imagem abaixo, podemos observar as escamas do Brannerion, um gênero de peixe que ocorria naquela região.

Fóssil do gênero Brannerion (Jordan, 1919), o ictiólito da Formação Romualdo, preservado em nódulo calcário encontrado no estado de Pernambuco. Fonte: Maria Luiza R Coutinho (CC 4.0 -BY-NC-ND).

O que comprova que em uma época muito antiga o Araripe foi banhado por águas marinhas são eles, os fósseis de organismos exclusivamente marinhos como braquiópodes, e também, de espécies marinhas de peixes, bivalves, foraminíferos, nanofósseis calcários e crustáceos encontrados na Formação Romualdo. Apesar de, também, haver evidências geoquímicas de pulsos marinhos anteriores na bacia.

Fósseis de equinóides da Formação Romualdo. Fonte: Maria Luiza R Coutinho (CC 4.0 -BY-NC-ND).

Dessa maneira, o estudo dos fósseis da bacia do Araripe serve para entendermos como se deu a evolução do oceano Atlântico, e a paleogeografia de como esse mar atingiu o Araripe é imprescindível para alcançarmos este objetivo. Foi pelo norte ou pelo sul? O Atlântico Norte atingiu o Atlântico Sul ou vice-versa? Que outros segredos esses fósseis guardam?

Os fósseis do Araripe são encontrados em museus por todo o mundo. Na região existe o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens da Universidade Regional do Cariri, localizado na cidade de Santana do Cariri-CE, que dispõe de uma imensa coleção dos mais variados grupos como plantas, dinossauros, pterossauros, peixes, insetos etc. Vale a pena conhecer!

Abaixo deixo vocês com uma foto do atual cenário da área da bacia e a belíssima ilustração da Formação Romualdo feita pelo paleoartista da região do Cariri, o João Eudes Ribeiro, pra imaginar esse sertão coberto de mar.

Chapada do Araripe na região de Exu-PE. Foto de Ludimila Moreira (CC 4.0 -BY-NC-ND)

Paleo-ambiente Romualdo: Araripemys barretoi caçando. Feita por João Eudes Ribeiro (CC 4.0 -BY-NC-ND)

Conheça mais sobre o trabalho de ilustrações científicas e paleoarte do João no Instagram.


Bibliografias recomendadas:

Arai, M. Paleogeografia do Atlântico Sul no Aptiano: um novo modelo a partir de dados micropaleontológicos recentes. B. Geoci. Petrobras, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 331-351, maio/nov. 2009.

Barreto, A. M. F. A paleontologia e os fósseis do Araripe pernambucano / Alcina Barreto, Aline Ghilardi e Rudah Duque; design gráfico Aline M. Ghilardi. Recife: PALEOLAB, 2016.

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