Por Ruth Beatriz Mezzalira Pincinato
Ilustração: Joana Ho
O pescado é uma fonte importante de proteína produzida pela aquicultura e pela pesca (o “pescado” feito no laboratório ainda não é uma realidade no mercado), que são importantes meios de vida para muitas pessoas (assista aqui o vídeo sobre o relatório da FAO, 2020). No entanto, esses dois métodos de produção são muito diferentes entre si. Na aquicultura tem-se um controle maior do processo de produção, que permite pesquisa e desenvolvimento, gerando inovação e aumento da produtividade, ou seja, uma maior produção de pescado com a mesma quantidade de insumos. A aquicultura produz os peixes, camarões e mariscos usando larvas (que são por sua vez, na maioria dos casos, produzidas também por cultivo), água, e ração (atualmente, a ração é constituída principalmente de insumos que não vem da pesca). Os principais cultivos trabalham com um ciclo fechado e não dependem de obter larvas do ambiente natural para a engorda. Já a pesca depende principalmente das condições ambientais ou seja, mesmo usando petrechos de pesca, sondas e embarcações, a pesca depende dos processos naturais que ocorrem nos oceanos e rios para produzir o pescado.
Outro aspecto que diferencia os dois modelos de produção é quanto aos direitos de propriedade. Os direitos de propriedade na aquicultura são relativamente melhor definidos do que na atividade pesqueira. Por direitos de propriedade se entende o direito que indivíduos ou organizações têm de controlar o acesso a bens de que são proprietários. Direitos bem definidos dependem de aspectos como o quanto esse direito limita outros indivíduos no uso do recurso natural (uso exclusivo e seguro), por quanto tempo esse direito é válido (cada ano exige renovação ou se é válido em perpetuidade), e também se os proprietários podem negociar o direito com outros (uso transferível). Em outras palavras, o direito de propriedade se assemelha a privatização do bem que, no nosso caso, é um recurso natural e pertence a todos (no caso do pescado selvagem). Isso inclui, por exemplo, restringir o acesso ao pescado selvagem ou a uma área específica do oceano para um número limitado de pescadores/indivíduos/entidades. Quando os direitos de propriedade são bem definidos existe um incentivo para não sobre-explotar o recurso natural e também a utilizá-lo da maneira mais eficiente possível. Para muitas pescarias no Brasil e no mundo esse não é o caso.
Essas características distintas das duas tecnologias são a base do desenvolvimento que vemos no gráfico abaixo: a produção vinda da aquicultura tem crescido rapidamente, enquanto que os desembarques da pesca estão relativamente estáveis desde os anos 80 - por volta de 90 milhões de toneladas por ano. A produção de pescado no Brasil tem esse mesmo padrão.
Quantidade de pescado produzido pela pesca e pela aquicultura mundialmente (milhões de toneladas), de 1950 a 2017. Fonte: A autora utilizando o banco de dados do FishStat (FAO, 2020), licença CC BY.
Em 2010, dois economistas compararam as condições de produção de salmão proveniente da aquicultura (principalmente Noruega e Chile) com as condições de produção da pesca (Alasca). De modo geral, ao longo dos anos os aquicultores de salmão conseguiram abaixar os custos de produção usando melhores tecnologias (e.g. vacinas, rações e equipamentos), garantindo mais lucro na atividade. Com um custo menor, os aquicultores conseguem oferecer um preço mais competitivo no mercado do salmão.
Um ponto importante nessa história do salmão é a definição da extensão do mercado do salmão. O salmão é, hoje em dia, um dos pescados mais comercializados internacionalmente. Existe um mercado global para esse pescado, que é relativamente indiferente quanto a tecnologia que o produz. Isso faz com que o preço que os pescadores do Alasca pedem para o seu produto dependa do preço que os aquicultores na Noruega cobram (e vice-versa). Então, considerando que a maior parte dos consumidores não percebe ou não se importa com a diferença entre o salmão pescado e o da aquicultura, os dois produtos competem diretamente por uma fatia maior do mercado. Essa competição tende a colocar uma pressão para reduzir os preços do salmão (independente da tecnologia de produção).
Os pescadores de salmão têm que ajustar o preço para continuarem com a sua fatia do mercado. Entretanto, sendo difícil abaixar os custos de produção, o lucro também é reduzido. Abaixar os custos sem melhorar a tecnologia não é fácil. Os pescadores de salmão do Alasca usaram seu desenvolvimento tecnológico (por exemplo, tipo de barco e arte de pesca) para garantir o acesso ao peixe que é limitado pelo tipo de manejo. Lá no Alasca, o pescador tem o direito a uma quota de salmão baseada e restrita ao tipo de barco e petrechos que ele usa. Isso quer dizer que existe relativamente pouco incentivo para investir em inovações em um tipo de barco ou em petrechos diferentes dos que são estabelecidos pelas autoridades para o manejo e que garantem o direto de acesso ao recurso natural. É claro que existem inovações e melhorias dentro das limitações impostas pelo manejo, mas comparando com a aquicultura existem menos.
Fazendo um paralelo com casos no Brasil, analisei a extensão do mercado de dois grupos importantes de pescado para o Brasil, a sardinha e os camarões. Os resultados da minha análise indicaram que a sardinha produzida pela pesca no Brasil e as sardinhas importadas competem no mesmo mercado (eu usei aqui dados do CEAGESP). Da mesma forma, os camarões pescados (camarão rosa e camarão sete-barbas) também competem com os camarões produzidos pela aquicultura, isto é, fazem parte do mesmo mercado. Tanto as importações quanto a aquicultura contribuem para uma maior oferta do produto. Assim, essa maior oferta coloca uma pressão nos preços desses pescados no mercado nacional e limitam o aumento relativo dos preços pagos aos pescadores nacionais. Dado a ausência de direitos de propriedade bem definidos na pesca desses recursos, pode-se esperar uma redução na renda dos pescadores e no esforço pesqueiro (o custo de sair para pescar não é compensado pelo preço do pescado). Isso beneficia de uma certa maneira as condições dos estoques pesqueiros.
No longo prazo, com a população humana aumentando e com os recursos naturais se tornando cada vez mais escassos, o pescado como fonte de proteína se torna cada vez mais importante na questão de seguridade alimentar (é importante lembrar que para diversas regiões e comunidades, o pescado é questão de subsistência e seguridade alimentar). Além disso, a pegada ambiental do pescado é menor do que a de outras fontes de proteínas. Por exemplo, em um estudo da revista Science, foram estimados diversos impactos ambientais para as diferentes fontes de proteínas para o consumidor. As emissões de gases do efeito estufa na produção de carne de vaca foram estimadas em 50 kg de CO2 equivalente por 100 g de proteína, enquanto que a de porco ~8, a de frango e a de pescado cultivado ~6.4 Uso da terra, de água doce e outras emissões no meio ambiente também colocam o peixe de cultivo como uma das fontes de proteína com menor impacto.
A quantidade de pescado a ser produzido (oferta) é uma decisão do produtor e do pescador que depende do preço que o pescado pode alcançar no mercado e de quanto os consumidores querem e estão dispostos a pagar pelo produto (demanda). No geral, a relação entre o preço do pescado e a quantidade que os produtores estão dispostos a produzir é positiva: quanto maior o preço mais os produtores estarão dispostos a produzir, como mostra a figura abaixo. Incluído neste preço está o custo de produção do pescado. Assim, dada uma certa demanda, caso o preço pago ao produtor não compense o custo, ele não terá interesse em produzir o pescado.
Curvas de demanda e oferta para o pescado. Fonte: Ruth Pincinato com licenças CC BY.
Além do custo em si, outras decisões tomadas pelos produtores e os demais elos na cadeia de produção são essenciais para o sucesso desses dois setores. Antes de falar nessas decisões é importante ter em mente o conceito básico em economia de que “não existe lanche de graça”. O que isso quer dizer é que existe um custo em todas as decisões que tomamos e que alguém paga por elas. Esse custo é associado ao fato de que os recursos são escassos e você tem que fazer uma escolha. No exemplo clássico do lanche, mesmo que alguém lhe ofereça um lanche, sem nenhuma expectativa de que receberá algo em retorno, existe ainda o custo do seu tempo para comer esse lanche que você poderia ter gasto em alguma alternativa. É claro que geralmente comida (boa) de graça pode ser difícil de negar, mas isso só significa que o preço da sua alternativa (por exemplo, “gastar” o seu tempo) é menor. No geral, nós diariamente utilizamos esse conceito: acordar mais cedo para correr ou dormir mais um pouco, comprar e consumir um produto orgânico ou convencional, casar ou comprar uma bicicleta.. e por aí vai.
O custo-oportunidade, ou o uso alternativo de tempo e dinheiro, também está presente na atividade pesqueira e na aquicultura. Por exemplo, custo-oportunidade de onde os produtores vão pescar ou colocar a fazenda de cultivo, custo-oportunidade do tipo de pescado que vão pescar ou cultivar (ex. salmão ou tilápia), sua qualidade e tipo de produto final (ex. filé ou inteiro). Todas essas decisões que os produtores de pescado têm que tomar afetam não só os custos, mas também contribuem para a renda da indústria do pescado. Eu disse antes que no geral os pescadores e aquicultores tem pouca margem para aumentar o preço do produto (e, portanto sua renda). Uma das alternativas para agregar valor ao produto é o processamento e/ou a diferenciação por seus atributos.
Na foto abaixo podemos ver dois tipos de produtos: um corte de salmão com qualidade de sashimi, embalado e vendido nas prateleiras do supermercado aqui perto de casa (e já ouvi dizer que no Japão existe uma máquina como aquelas de refrigerante para esse produto) e diversos peixes inteiros (alguns com selo de certificação), incluindo salmão (segunda foto de cima para baixo) no mercado de atacadista em Las Vegas (USA). É claro que para processar o salmão existe um custo extra, mas ao mesmo tempo, os consumidores que preferem fazer sashimi em casa sem ter que filetar o peixe (que diga-se de passagem não é fácil ter um bom rendimento na filetagem se você não tem muita experiência) pagam mais por esse benefício. Esses consumidores estão considerando aqui o custo-oportunidade do tempo e dinheiro deles. Outros produtores focam na diferenciação do produto em relação a atributos como origem (por exemplo, do Alasca, da Noruega, do Chile), certificações (por exemplo, Dolphin safe e MSC), tamanho, entre outros. Na foto abaixo com os diversos peixes inteiros podemos ver que alguns possuem uma etiqueta indicando atributos como: “selvagem” e “orgânico”. Nesse caso os produtores estão considerando que um segmento dos consumidores está disposto a pagar mais por esses atributos.
Salmão (marca “salma”) em corte para sashimi no supermercado em Stavanger (Noruega) (primeira foto de cima para baixo), e diversos peixes inteiros (alguns com selo de certificação), incluindo salmão (segunda foto de cima para baixo) num atacadista em Las Vegas (EUA). Fonte: Ruth Pincinato com licenças CC BY .
Existem ainda custos que estão “escondidos” na produção, tanto na pesca como na aquicultura. No geral, esses custos são chamados de externalidades negativas, porque a indústria os compartilha com a sociedade ao invés de incluir como parte dos seus custos. Por exemplo, destruição de habitat, sobre-explotação de recursos naturais, poluição, entre outros.
Uma das formas de incluir esses custos na conta da indústria é através de governança e regulamentos impostos pelo governo. Voltando na história do salmão, os custos de produção da indústria do salmão na Noruega eram baixos até meados dos anos 2000, mas nos últimos anos o custo vem crescendo novamente. Isso é em parte devido ao alto custo da ração e em parte devido aos custos para evitar e remediar impactos ambientais, como infestações de parasitas e doenças que podem ser transmitidas para os animais selvagens. O governo norueguês tem estabelecido diversas restrições para evitar os impactos ambientais causados pela produção de salmão. A indústria também tem investido em alternativas de produção que a tornem mais sustentável no longo prazo, utilizando, por exemplo, sistemas fechados de produção em que a água é recirculada e o resíduo sólido é tratado.
Entretanto, existem tantos aspectos que compõe a decisão dos produtores que é difícil elaborar um sistema de governança com regulamentos de entrada e saída (e. g. captura total permitida, total de biomassa viva nas redes de cultivo, total de parasitas permitido por peixe, a quantidade de descarga de efluentes permitida, o tamanho de malha de rede e defeso – interrupção da pesca por um prazo geralmente relacionado ao período reprodutivo das espécies) que não deixe margem para consequências não intencionais. O ser humano, e nesse sentido, a indústria também, são movidos por incentivos. Então, melhor do que ditar regras é oferecer incentivos que incluam os custos escondidos dessas atividades.
Assim, para garantir seguridade alimentar com um aumento da oferta de pescado ao longo dos anos e o desenvolvimento sustentável dessas indústrias é necessário tanto oferecer os incentivos certos para garantir a internalização das externalidades negativas, como também para garantir produtividade e demanda.
Referências:
FAO, 2020. Aquaculture production 1950-2017. FishStatJ: Universal software for fishery statistical time series [WWW Document].
Valderrama, Diego, e James L. Anderson. 2010. “Market Interactions between Aquaculture and Common-Property Fisheries: Recent Evidence from the Bristol Bay Sockeye Salmon Fishery in Alaska.” Journal of Environmental Economics and Management 59(2): 115–28.
Pincinato, R.B.M., Asche, F., 2018. Domestic landings and imports of seafood in emerging economies: The Brazilian sardines market. Ocean Coast. Manag. 165, 9–14.
Pincinato, R.B.M., Asche, F., 2016. Market integration in brazilian shrimp markets. Aquac. Econ. Manag. 20, 357–367.
Poore, J., Nemecek, T., 2018. Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers. Science (80-. ). 360, 987–992. https://doi.org/10.1126/science.aaq0216
Sobre a autora:
Ruth é Jundiaiense (SP) com endereço em Stavanger (Noruega). Oceanógrafa formada pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora na área de economia pela Universidade de Stavanger (UiS). Dedica-se a entender quais são os incentivos que os agentes econômicos (o que nos incluí) recebem para utilizar os recursos naturais de uma forma sustentável.
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