top of page

A extraordinária vida associada às carcaças de baleias no mar profundo

Por Joan Manel Alfaro Lucas


Esta história começa em 1987 quando, em uma expedição oceanográfica liderada pelo Dr. Craig Smith, da Universidade do Havaí, na Bacia de Santa Catalina, California, o submersível de pesquisa Alvin achou uma carcaça de baleia no assoalho marinho a 1240 metros de profundidade (Smith et al. 1989). Esta descoberta reforçou uma ideia que já tinha sido sugerida anteriormente... Mesmo sendo comum a morte de baleias nas zonas costeiras, muitas morrem em regiões bem afastadas das praias afundando-se até as profundezas do oceano, no que é conhecido como o mar profundo. 


O mar profundo ocupa 63% da superfície do planeta sendo considerado o maior bioma da Terra. É um ambiente único e extremo, pela baixa temperatura, alta pressão e escuridão (a luz não penetra mais de 200 metros de profundidade, onde de fato começa o mar profundo). A ausência de luz impossibilita a produção de matéria orgânica a partir da energia solar, ou seja, a fotossíntese. Por causa disto os ecossistemas são muito pobres em recursos alimentares e dependem quase exclusivamente  do afundamento de matéria orgânica produzida na superfície do oceano. Por exemplo, as partes mais extensas do mar profundo, as planícies abissais, são autênticos desertos escuros e frios, onde baixíssimas abundâncias de organismos sobrevivem filtrando água e sedimento, aproveitando a pouca matéria orgânica que chega da superfície. 


Voltemos para a baleia da Califórnia do Dr. Smith. Alguns indícios, como a total ausência de carne, apontavam que a carcaça  encontrava-se a vários anos no assoalho marinho. Mesmo assim, tanto o esqueleto como os sedimentos ao redor, “fervilhavam” de vida. Vermes, caramujos, lapas (gastrópodes), densos tapetes de bactérias, bivalves como amêijoas e mexilhões... Aquela carcaça era realmente um oásis de vida no profundo e deserto fundo da bacia. Foi então que os cientistas começaram a entender que para um ambiente tão pobre em alimento a chegada de uma carcaça de baleia é um evento extraordinário. 


As baleias são os maiores animais que habitam a Terra. A baleia azul, por exemplo, pode atingir 30 metros de comprimento e 120 toneladas de peso, sendo o maior animal que já habitou nosso planeta. Para as desertas profundezas do assoalho oceânico as carcaças de baleia são as maiores fontes de matéria orgânica que chegam da superfície. Só uma carcaça de baleia de 40 toneladas significa 2000 anos de queda de matéria orgânica! 

Figura 1. Carcaça de baleia no assoalho marinho profundo na Bacia de Santa Catalina, Califórnia, densamente colonizada por tapetes de bactérias quimiossintetizantes. Fotografia de Craig R. Smith, Universidade do Havaí, EUA.

Alguns dos organismos achados na carcaça pelo time do Dr. Smith tornaram-se muito mais relevantes quando identificados. É o caso, por exemplo, das espécies de bivalves que pertencem a  grupos conhecidos por ter simbiose com bactérias quimiossintetizantes. Estes mexilhões, então, alimentam-se da matéria produzida por estas bactérias, um processo parecido com o que os corais de águas rasas fazem com organismos fotossintéticos. Além disso, os densos tapetes bacterianos achados na carcaça também pertenciam a este tipo de bactéria. 


De fato, semelhante aos vegetais nos ambientes terrestres, as bactérias quimiossintetizantes no mar profundo formam a base da cadeia alimentar, onde a disponibilidade de certos compostos inorgânicos é abundante, originando o que é conhecido como comunidades quimiossintéticas de mar profundo. É o caso das fontes hidrotermais, formadas em partes do assoalho onde a atividade vulcânica é elevada e as exsudações são frias, resultado do fluxo de hidrocarbonetos provenientes de reservatórios do subsolo, descobertas anteriores  à carcaça do Dr. Smith (saiba mais sobre fontes hidrotermais neste post). As espécies de bivalves associadas à carcaça também foram descobertas pela primeira vez em fontes hidrotermais e exsudações frias! Todas estas similaridades levaram a sugerir que as carcaças de baleia atuam como trampolins para habitantes comuns entre diferentes comunidades quimiossintéticas se dispersarem, pois normalmente estão separadas por distâncias gigantescas impossíveis de serem alcançadas pela dispersão de suas  larvas (Smith et al. 1989).


Este descobrimento, além de revolucionar a ecologia das comunidades quimiossintéticas, levou várias equipes de cientistas a pesquisarem mais sobre estes ambientes. Para não ter que achar a agulha no palheiro, ou seja, uma carcaça no imenso fundo oceânico, os cientistas começaram a afundar carcaças nas praias utilizando lastro. Assim eles conseguiam afundar em um determinado ponto do oceano e fazer as amostragens como e quando precisar. Depois destes experimentos foi possível compreender que comunidades de carcaça de baleia no mar profundo desenvolvem não só comunidades quimiossintéticas, mas sucessivas  comunidades extremamente diversas e abundantes que exploram as carcaças de maneiras surpreendentes… por quase um século!

Figura 2. Peixes-bruxa se alimentando da carne de uma carcaça de baleia durante o estado ecológico de necrófagos móveis na Bacia de Santa Catalina, Califórnia, EUA. Fotografia de Craig R. Smith, Universidade do Havaí, EUA.

As carcaças de baleia desenvolvem principalmente três estados ecológicos  sucessivos, ou seja, três comunidades mais ou menos diferenciadas no tempo (Smith et al., 2015). O primeiro, o estado dos necrófagos móveis, começa com a chegada da carcaça no assoalho. Centenas de animais, como peixes-bruxa, perfuram a carne da baleia enquanto que tubarões de profundidade mordem grandes pedaços da carcaça. Estas comunidades, análogas aos urubus na savana, removem várias dezenas de quilogramas por dia e podem consumir toda a carne em até 2 anos dependendo do tamanho da carcaça.

Image 3 – Crabs, snails, and anemones colonizing the skeleton during the enrichment and opportunist stage in a whale carcass in Monterey Canyon, California, USA. Photo by the Monterey Bay Aquarium Research Institute. USA.

O segundo estado, o estado de enriquecimento e oportunistas, também pode durar até 2 anos. Durante este período altíssimas densidades de invertebrados, vermes e crustáceos, colonizam o sedimento ao redor do esqueleto exposto por causa do consumo da carne. Estes invertebrados alimentam-se diretamente dos restos de gordura e carne deixados pelos necrófagos assim como dos ossos, muito ricos em proteína e gordura.


O último estado, aquele da baleia do Dr. Smith quando descoberta, é o estado sulfofílico. Alguns microorganismos conseguem penetrar na densa e dura matriz óssea e entrar facilmente nas grandes quantidades de gordura do interior dos ossos. Estes organismos utilizam o enxofre dissolvido na água para digerir a gordura gerando compostos inorgânicos reduzidos como produto secundário. Um processo parecido pode acontecer também no sedimento ao redor impactado pela matéria orgânica da própria carcaça. Isto gera um fluxo suficiente para desenvolver uma comunidade baseada na quimiossíntese. É o estado mais longo de todos podendo atingir mais de 80 anos. 


As descobertas ao redor das carcaças de baleia no mar profundo não terminaram aqui. Desde que  em 1987 o Dr. Smith estudou a primeira carcaça no mar profundo, 129 espécies novas têm sido descobertas, muitas delas só se encontram nestas comunidades. A mais surpreendente aconteceu no ano 2002 quando Osedax, um novo gênero de vermes, foi descoberto no Canyon de Monterrey, Califórnia, a 2891 metros de profundidade (Rouse et al., 2004). As espécies deste gênero são sésseis e não possuem nem boca nem ânus, nem nenhum tipo de sistema digestório… e alimentam-se dos ossos das baleias! 


Osedax possui uma estrutura chamada de raiz e é lá onde encontra-se a resposta aos múltiplos mistérios que envolvem estes organismos. Esta estrutura, com ramificações globulares e que fixa o organismo nos ossos, possui bombas de prótons que acidificam a matriz óssea. A “sopa” produzida por este processo é ingerida pela própria raiz e transportada às  estruturas internas chamadas de bacteriocistos onde se encontram bactérias simbiontes não quimiossinteticas responsáveis pela digestão. Estes vermes são capazes de degradar completamente um esqueleto de baleia juvenil, menos calcificados e gordurosos que os dos adultos, em uma década. Impressionante, não é? espere… 


Todas estas estruturas e forma de vida só se aplicam  às fêmeas de Osedax. Os machos são anões, microscópicos, e  vivem dentro das fêmeas atuando como simples reservatórios de esperma. Acontece que as larvas de Osedax que se encontram em um esqueleto se desenvolvem como fêmeas;  porém se estas larvas encontram uma fêmea elas são absorvidas se desenvolvendo como machos pedomórficos, ou seja, apenas se desenvolvem sexualmente e não morfologicamente, retendo muitos caracteres de larva. Cada fêmea pode ter centenares de machos no que acredita-se ser uma estratégia para  assegurar o sucesso reprodutivo.

Figura 4. Osso de baleia densamente colonizado por Osedax no Canyon de Monterey, Califórnia, EUA (esquerda) e indivíduo de Osedax japonicus com a raiz de cor amarelada (direita). Fotografias do Monterey Bay Aquarium Research Institute, EUA, e Norio Miyamoto, da Japan Agency for Marine-Earth Science and Technology, respectivamente.

Organismos como Osedax demonstram que as carcaças de baleia não só são oásis de vida no mar profundo mas também uma fonte de novidades evolutivas, sendo capazes de sustentar formas de vida únicas e especializadas. Mas… Será que as carcaças de baleia no mar profundo sustentam comunidades parecidas em todas as bacias oceânicas? Ou, como nas fontes hidrotermais, cada bacia sustenta comunidades com histórias evolutivas diferentes? Este tipo de pergunta ainda  é muito difícil de responder pois praticamente todas as carcaças naturais e implantadas tem sido estudadas no oceano Pacífico Norte. 


Só  em 2010 uma carcaça natural foi descoberta na Antarctica e, mais recentemente,  em 2013, no Atlântico Sudoeste profundo na  costa do Brasil, também foi encontrada  uma carcaça natural. Esta última, descoberta e estudada por pesquisadores brasileiros e japoneses, e tema do meu projeto de mestrado na Universidade de São Paulo,  foi a primeira comunidade a ser estudada em todo o Atlântico profundo. Os resultados  das pesquisas estão começando a sair reforçando algumas hipóteses prévias e esclarecendo ainda o funcionamento de alguns processos ecológicos…


Muitas são as perguntas a serem respondidas e muitas mais serão geradas no futuro pois parece que estas extraordinárias comunidades, desconhecidas há menos de 30 anos, são uma fonte inesgotável de surpresas.


 

Referências, links de interesse e vídeos:


Smith, C.R., Kukert, H., Wheatcroft, R.A, Jumars, P.A., Deming, J.W. (1989) Vent fauna on whale remais. Nature, 341. Pp 27-28.


Rouse, G.W., Goffredi, S.K., Vrijenhoek, R.C. (2004) Osedax: Bone-Eating Marine Worms with Dwarf Males. Science, 305.Pp 668-671.


Smith, C.R., Glover, A.G., Treude, T., Higgs, N.D., Amon, D.J. (2015) Whale-Fall Ecosystems: Recent Insights into Ecology, Paleoecology, and Evolution. Annual Review of Marine Science, 7. Pp 571-596.






 

Sobre Joan Manel Alfaro Lucas:

Biólogo formado pela Univeristat Autònoma de Barcelona, Barcelona, fiz um ano de intercâmbio na Universidade Federal de Minas Gerais, o que me permitiu, entre outras coisas, conhecer o Brasil e aprender português. Apaixonado pela ecologia das comunidades de mar profundo, especialmente as quimiossintéticas, cursei o meu mestrado no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, onde tive a oportunidade de estudar a primeira carcaça de baleia no oceano Atlântico profundo. Além disso, possuo experiência em cruzeiros oceanográficos, tendo navegado 2800 milhas náuticas pelo Atlântico Sudoeste, fazendo amostragem, triagem e identificação de invertebrados bênticos, análise de isótopos estáveis e linguagem R para pesquisas ecológicas. 


699 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page