Por Maria Luiza Leal de Paula
Quem faz parte da construção do conhecimento sobre a pesca e o pescado?
Ilustração de Luiza Soares
Chamar peixe de indivíduo só poderia ser coisa de biólogo mesmo. Trabalhar com estatística pesqueira tem suas maluquices: dias e mais dias resolvendo os códigos para, enfim, obter a análise que se quer; depois, mais dias escolhendo qual gráfico melhor representa o que você encontrou; e um dia ou outro vivendo as grandes alegrias da coleta de dados, vendo peixes de verdade. Mas como é que se responde à família a famosa pergunta: “o que você estuda?”. É nesse momento que a gente transforma todos os números nas histórias de vida que a pesca pode contar.
Aqui, não estamos falando de um, ou dezenas ou centenas de peixes. Nessa pesquisa, eu trabalhei com dados de comprimento de um milhão e quinhentos mil peixes de três espécies diferentes pescados no litoral sudeste brasileiro. É muito peixe e muita gente envolvida em todo esse processo, da coleta ao tratamento dos dados, trabalho que foi feito por pesquisadores e monitores de pesca do Instituto de Pesca de Santos desde 1960. Cada um desses peixes, que agora podemos começar a chamar de indivíduos, foi medido em seu comprimento total em alguma indústria, terminal pesqueiro ou comunidade pesqueira que permitiu que isso fosse feito logo após a chegada do barco e desembarque dos recursos pescados.
Figura 1: Trabalho de funcionários e pesquisadores na mensuração dos peixes capturados. (Foto de Instituto de Pesca, licença CC BY-SA 4.0.)
Eu poderia parar a história por aqui e já estaria fascinada o suficiente, pois conhecer todos os agentes humanos desse trabalho é complexo e especial. Encontrei-me com mestres de grandes barcos aos quais nos dirigíamos com uma postura de respeito e cuidado. Tinham também funcionários que eram chamados para trabalhar por dia para a separação e processamento do pescado, dia esse que era mistério tanto para eles quanto para nós que aguardávamos para coletar o nosso material de pesquisa, e tudo dependia do tempo, do mar e, claro, do mestre. Os pescadores artesanais levavam vidas mais simples e nos acolhiam com um carinho de quem se conhece há anos, mas estávamos ali por apenas 30 minutos. E tinham ainda meus colegas de trabalho, pesquisadores como eu ou funcionários do Instituto de Pesca, que mostravam desenvoltura para lidar com as particularidades de cada um dos diferentes dias e tarefas de quem trabalha com pescado (Figura 1). Alguns desses colegas eu não encontrei pessoalmente, mas sinto que conheci ao tocar nas folhas amarelas de décadas atrás escritas a mão contendo as informações de trabalhos de campos realizados. Dessas fichas, sei que muitas foram escritas por pesquisadores muito importantes para os estudos da pesca no Brasil, como a Anna Emília Amato de Moraes Vazzoler, e as caligrafias denunciavam seus cuidados minuciosos em inserir tudo o que se podia naquele pedaço de papel.
Uma vez medidos, os peixes viram números, e cada um desses números significa alguma coisa para a história de vida dessas espécies. Com os comprimentos, inferimos as idades desses indivíduos e obtemos então um retrato da porção da população que aquela pesca retirou do mar. Será que temos mais indivíduos jovens sendo pescados? Mais indivíduos na idade adulta? Qual a longevidade que devem atingir? E para concluir tudo isso precisamos conversar com outros ictiólogos que estudam sobre a biologia desses peixes, utilizando das informações que as gônadas ou os otólitos (se você não se lembra deles, dá uma conferida nos textos da Claudia Namiki e da Natasha Hoff), por exemplo, nos contam sobre os períodos de desenvolvimento desses animais.
Então, imagine que sabemos a idade de peixes pescados hoje, no mês passado, há 3 anos, há 10 anos e até há 60 anos! Nos questionamos, portanto, se a pesca está pescando como se pescava anteriormente, e se essa flutuação nos conta sobre a sustentabilidade dessas capturas. Por exemplo, se notarmos que estamos retirando do mar indivíduos cada vez menores e mais jovens, entendemos que não estamos dando tempo para esses peixes crescerem, se reproduzirem e, dessa forma, perpetuarem sua existência nesse ambiente. Tal existência é importante para nós também, que utilizamos desses organismos como fonte de recursos e alimento.
Figura 2: Espécies analisadas: Macrodon atricauda (pescada foguete), Cynoscion jamaicensis (goete) e Micropogonias furnieri (corvina), respectivamente. (Fotos: Instituto de Pesca, licença CC BY-SA 4.0.)
Entre as espécies que pesquisei, a pescada foguete (Macrodon atricauda, Figura 2 superior) e goete (Cynoscion jamaicensis, Figura 2 meio) apresentaram estabilidade nos parâmetros de crescimento ao longo dos anos, com um aumento no comprimento máximo teórico e diminuição na taxa de crescimento nos anos mais recentes. Já a corvina (Micropogonias furnieri, Figura 2 inferior) mostrou aumento na longevidade nos últimos anos analisados. O que poderia ser entendido como uma melhora nas condições dessa população de peixes, já que estariam se desenvolvendo mais, na verdade indica que a pesca está se direcionando para outro local agora. Essa movimentação decorre da criação da Área de Proteção Ambiental Marinha no litoral do Estado de São Paulo, que baniu a atividade dos barcos de parelhas em partes da costa, obrigando-as a atuarem em águas mais profundas e mais ao sul, onde os peixes crescem mais lentamente e atingem maiores comprimentos. Esse tipo de pesca, a parelha, utiliza de dois barcos que arrastam juntos uma rede pelo fundo do mar com pouca seletividade e prejudicando também os habitats ali presentes.
Nas corvinas, observei também o aumento da porcentagem de indivíduos jovens capturados, o que indica a necessidade de um estudo a respeito da seletividade das parelhas para evitar que esses peixes não sejam retirados do mar antes de deixarem seus descendentes.
Essas valiosas informações podem servir de instruções para o direcionamento das políticas públicas de pesca, que devem trabalhar integrando tanto o conhecimento sobre o pescado, quanto sobre os pescadores em suas mais diversas categorias, e a demanda comercial desse recurso. Essa tarefa nada simples fica ainda mais comprometida quando sabemos que a coleta de dados, como a que é feita pelo Instituto de Pesca no estado de São Paulo, é raridade no país. Não existem acervos tão grandes como esse em outras regiões, que abranjam tantas espécies ao longo de tanto tempo, e agora você já sabe as consequências disso. Como saberemos se a pesca está impactando muito ou pouco, dentro do normal ou fora deste, se não tivermos referencial de outros momentos para comparar e entender as pressões pesqueiras já vividas por essas espécies de peixes?
Por isso seguimos cientistas, com olhar atento à natureza e aos indícios que ela nos mostra sobre os impactos que nela exercemos; cidadãos, articulados na cobrança e verificação do incentivo a produção de conhecimento no país e a gestão das atividades humanas; e humanos, com o cuidado de enxergar tudo que está envolvido nessa prática tão tradicional e importante ao nosso país, que é a pesca.
Sugestões de leitura:
CARNEIRO, Marcus H. 20007. Diagnóstico dos recursos pesqueiros marinhos, Cynoscion jamaicensis, Macrodon ancylodon e Micropogonias furnieri (perciformes: sciaenidae), da região sudeste-sul do Brasil entre as latitudes 23° e 28° 40 S. Tese de doutorado em Ciências Biológicas na Universidade Federal de São Carlos.
HAIMOVICI, Manuel; CAVOLE, Leticia M.; COPE, Jason M.; CARDOSO, Luís Gustavo. 2021. Long-term changes in population dynamics and life history contribute to explain the resilience of a stock of Micropogonias furnieri (Sciaenidae, Teleostei) in the SW Atlantic. Fisheries Research. 2021. Doi: 10.1016/j.fishres.2021.105878.
SANTOS, Rosa. S.; COSTA, Marcus. R.; ARAÚJO, Francisco. G. 2017. Age and growth of the white croaker Micropogonias furnieri (Perciformes: Sciaenidae) in a coastal area of Southeastern Brazilian Bight. Neotropical Ichthyology. Doi: 10.1590/1982-0224-20160131.
KING, Michael. 2007. Fisheries Biology, Assessment and Management. Wiley–Blackwell 2007. Doi:10.1002/9781118688038.
Sobre a autora:
Me chamo Maria Luiza Leal de Paula, tenho 24 anos, sou uma mulher cis parda e moro em São Paulo capital. Sou Bióloga pela Universidade de São Paulo e escolhi essa profissão porque sempre fui apaixonada pela vida marinha. Sou mergulhadora desde a adolescência e ver o fundo do mar sempre me pareceu visitar um outro universo de um encantamento particular e incomparável. Logo no começo da graduação me envolvi com estágios voluntários buscando trabalhar com tartarugas marinhas e nesse campo tive oportunidade de participar de monitoramentos de pesca que interagiam com esses animais. Me apaixonei pelos momentos em que pude conversar com pescadores e entender suas relações com o ambiente, e foi quando decidi que gostaria de estudar pesca. Iniciei minha pesquisa em pesca trabalhando com idade, crescimento e mortalidade de três espécies comerciais de peixes junto ao Instituto de Pesca de Santos, onde realizei a minha Iniciação Científica. Agora me encontro no início do caminho do mestrado em Ecologia, em que estudarei ferramentas para implementação de manejo participativo em comunidades de pesca artesanal na Bahia.
E claro, como a vida não se resume a trabalho (por mais que eu ache o meu encantador), vivo a vida dançando e tocando por aí. O samba corre nas minhas veias desde pequenininha e espero tocar em uma escola de samba no carnaval de 2023. Nas horas vagas, espero ser encontrada em forrós ou rodas de conversas com os amigos, ou dando uma fugida para um cantinho com natureza para manter a sanidade mental de quem vive na cidade grande.
@marialu.depaula
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