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Fazer pesquisa no Brasil não é fácil - e a gente deve falar sobre isso

Atualizado: 3 de jul. de 2023

Por Raquel Saraiva



Cortes orçamentários mostram necessidade da academia levar ciência para a sociedade

Ilustração: Joana Ho

A vida dos pesquisadores brasileiros nunca foi fácil, mas as expectativas para 2019 são ainda piores. No dia 28 de março, o presidente da república assinou o Decreto 9.741 que bloqueia para todos os ministérios parte dos valores já estabelecidos e aprovados na Lei Orçamentária Anual (LOA). Os cortes são de 24,84% no Ministério da Educação (MEC) e 42,27% no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).


“Pense se, da noite para o dia, o seu salário fosse reduzido em 30%. Você conseguiria pagar todas as contas e manter seu padrão de vida? Pois esse é o cenário atual das nossas universidades públicas. Como as universidades irão manter pesquisa, ensino e extensão? Quantos sonhos, assim como o meu, correm o risco de serem interrompidos? É frustrante ter chegado até aqui e imaginar que todo o caminho percorrido pode ter sido em vão”, diz Fernanda Bustamante, pesquisadora de citogenética vegetal na UFPE.


Divulgação

A importância das universidades e seu papel na pesquisa foram bastante explorados pela imprensa nas últimas semanas, além das grandes descobertas feitas no nosso território. “Ciência está em tudo! No remédio, na vacina, no celular, no motor do carro, na preservação da natureza... Ciência é vital para que nosso país se desenvolva de fato e seja capaz de gerar empregos e igualdade social!”, destaca a doutoranda em neurofisiologia pela USP e pela Universidade de Amsterdam, Lívia Clemente.


Após o anúncio do governo, fiquei assustada ao ver que muitos brasileiros apoiam os cortes. Ainda pior: muita gente passou a espalhar fotos e notícias, em grande maioria mentirosas, com a intenção de desqualificar a comunidade acadêmica e os trabalhos desenvolvidos por ela. Esse desprezo e a crença nos factóides refletem um profundo desconhecimento do que é produzido e desenvolvido nas universidades públicas. E nós, cientistas, somos responsáveis por isso. Em meio às tantas atividades obrigatórias que temos, divulgar o trabalho para um público não-acadêmico não está entre as prioridades.


Imagine um operário de uma fábrica de chocolate tendo que pensar nas receitas, executá-las, cuidar da compra de materiais, de embalar e transportar o produto, cuidar das vendas e atender os clientes. É isso que faz um pesquisador. Trabalhar com ciência requer atuação nas áreas de administração, contabilidade, redação, recursos humanos, matemática e estatística, docência, fluência de leitura e escrita em inglês, conhecimentos básicos de design (para as apresentações e pôsteres), e, em muitos casos, até programação e desenho! O pesquisador tem que aprender sozinho a executar uma série de atividades que normalmente são exigidas de inúmeros profissionais distintos.


Em parte por causa do excesso tarefas, a maioria dos pesquisadores não explica nem para familiares e amigos próximos como é sua pesquisa. No entanto, deveria ser regra falar para a sociedade sobre nossas hipóteses, nossos experimentos, nossos resultados e rotinas. Isso certamente gera mais interesse pela área acadêmica e também recruta mais apoiadores a favor das nossas lutas. Além de tudo, se nossos trabalhos são custeados pela sociedade, é nossa obrigação moral dar a ela nossos resultados e mostrar como é o desenvolvimento do trabalho.


Diligência

O trabalho de pesquisa na pós-graduação demanda uma dedicação absurda e não dá direito a carteira assinada, licença maternidade, 13º e férias. Até folgas e finais de semana muitas vezes têm que ser “negociados” com o orientador. O dinheiro total da bolsa deve ser devolvido ao governo se o pesquisador não apresenta seu resultado ao final do período determinado, lembra a doutoranda em ecologia Alice Reis, da UFBA.


“A bolsa de pesquisa representa o salário da maioria dos pesquisadores do país. Um bolsista não pode ter outro trabalho, é obrigado a prestar 40h semanais em estudo ou pesquisa e não tem esse tempo contabilizado na previdência social. Mas a sociedade, principalmente as famílias de quem escolhe fazer pesquisa, não enxerga o “estudante” como trabalhador”, destaca Alice.


Além disso, o ambiente acadêmico é emocionalmente muito desgastante. Na academia eu também vi artigo sendo “roubado”, vi professor humilhar e constranger aluno por motivos fúteis no meio do laboratório, vi orientador ser racista e xenófobo com orientando, vi professor desrespeitar e humilhar candidato durante entrevista para programa de doutorado e vi aluno se machucar feio por falta de equipamento de proteção na faculdade. E é deste ambiente desafiador e muitas vezes inóspito que saem trabalhos importantes e cientistas talentosos. Porque ciência brasileira é muito maior que os problemas que existem na academia.


“Chegamos até aqui porque somos resistência”, sintetiza Fernanda Bustamante. “Sabemos que 43% das vagas das universidades públicas são ocupadas por alunos das classes mais pobres, e que 95% da produção científica brasileira advém das universidades públicas, sendo que ocupamos a 13ª posição na produção científica global de um total de mais de 190 países”, ressalta.


Tem que ser muito forte para aguentar a academia. E também precisa ter estabilidade emocional, suporte emocional e financeiro da família ou de amigos, além de amar muito o que faz - porque sem amor não se sobrevive nesse ambiente. Nas universidades públicas brasileiras não falta gente talentosa e que ama o trabalho. “Ser pesquisador no Brasil é frustrante”, resume a pesquisadora Luiza Freire, do departamento de Física da UFS.


“Estou há 4 meses na Universidade Federal de Sergipe prestando serviço voluntário, porque não há verba e pesquisador não pode parar! Iria trabalhar em um projeto na UFMG, o orçamento da Capes está congelado/cortado!”, desabafa. Luiza trabalhou por dois anos na Bélgica, aprendendo uma técnica em dosimetria das radiações com despesas pagas pela Capes.


Conhecendo o que é feito e nas condições em que é feito, é impossível não torcer pelo sucesso dos pesquisadores brasileiros! Lembro de alunos se juntando para comprar um aparelho de Datashow para a universidade. Vi vários aprenderem inglês sozinhos lendo artigos científicos, já que não podiam pagar um curso. Vi estudantes dormirem na universidade por várias vezes porque era o único jeito de estar na faculdade de madrugada para fazer saída para campo!


Também vi professor pagar por material da aula prática do próprio bolso. E pagar por passagens de avião para o orientando participar de congresso e para o aluno de outro estado estar presente no enterro da mãe. Vi estudantes de iniciação e de pós passarem a véspera e o Natal no laboratório tocando experimento. Por isso tudo fiquei arrasada vendo as universidades e os pesquisadores serem depreciados por tanta gente. Passou da hora de espalhar o que é fazer ciência no Brasil.


Sendo assim, por que continuar pesquisando?


Diante deste cenário, fazer essa pergunta é inevitável. Veja o que cientistas de diversas áreas dizem:











Entenda os cortes


O governo contabiliza um corte, que o ministro da educação Abraham Weintraub insiste em chamar de contingenciamento, de R$ 1,7 bilhão do orçamento de todas as universidades. Isso representa 24,84% dos gastos discricionários ou não-obrigatórios, que são os gastos como água, luz, compra de papel higiênico e produtos de limpeza, pagamento de terceirizados, obras, equipamentos e realização de pesquisas, e 3,43% do orçamento total das federais. As chamadas despesas obrigatórias, como assistência estudantil e pagamento de salários e aposentadorias, não foram afetadas.


O MCTIC teve reduzido 42,27% de seu orçamento para despesas de investimento. Segundo organizações científicas e acadêmicas, o “contingenciamento” “inviabiliza o desenvolvimento científico e tecnológico do País”. A afirmação foi feita em carta enviada a autoridades do executivo e do legislativo e assinada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Academia Brasileira de Ciências (ABC), Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de CT&I (Consecti), Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Municipais de Ciência, Tecnologia e Inovação.


“As novas restrições orçamentárias atingem a integridade do programa de bolsas, fonte da formação de novos pesquisadores desde a criação do CNPQ”, diz a carta, ressaltando que o MCTIC já estava com um orçamento “extremamente reduzido em 2019, devido aos sucessivos cortes dos últimos anos”.


A técnica administrativa da UFBA Kelly Rangel concorda. “O corte de verbas não é uma novidade do governo Bolsonaro, mas é o mais perverso, sem dúvidas. Os recursos PROAP da CAPES, que mantém os cursos de pós-graduação, ainda não foram repassados, e assim deixamos de custear a vinda de docentes para bancas, auxílio financeiro para apresentação de trabalho de estudante/docente, e mesmo para compra de material de expediente. Passagens e diárias para convidados em eventos e docentes em bancas de concursos estão suspensas. O tom de preocupação só vem piorando”, diz ela, que atua no curso de mestrado e doutorado em Estudos interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA.

 

Sugestões de leitura: BORGES, Thaís. Da descoberta do zika vírus a nanopartículas em fungos: conheça a 'balbúrdia' da Ufba. Jornal Correio*, Salvador, 05 mai 2019.



FAVERO, Jana. Os efeitos da falta de comunicação da ciência com a sociedade. Bate-papo com Netuno, 09 ago 2018.


JOSÉ LOPES, Reinaldo. Universidades públicas produzem mais de 90% da pesquisa do país; resta saber até quando. Folha de S. Paulo. São Paulo, 21 abr 2019.


MOURA, Mariluce. Talvez haja uma larga saída à frente. Ciência na Rua. São Paulo, 3 maio 2019.


RIGHETTI, Sabine & GAMBA, ESTÊVÃO. Sim, as universidades públicas fazem pesquisas. Folha de S. Paulo. São Paulo, 23 abr 2019.



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