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Parcerias público-privadas de Unidades de Conservação sob uma ótica socioambiental

Atualizado: 14 de nov. de 2020

As verdades por trás das concessões à iniciativa privada das Unidades de Conservação do Estado de São Paulo.


Por Caio Tancredi Zmyslowski


A imagem mostra cercos fixos na água. Ao fundo vemos a vegetação nativa.

Cerco fixo da pesca artesanal - Parque Estadual da Ilha do Cardoso (Fonte: Noeli Neves com licença CC BY SA).


Você sabe como funciona a gestão de uma Unidade de Conservação (UC)? Quais são seus objetivos e categorias de proteção? O que representam as parcerias público-privadas nesse contexto? Neste texto vamos explicar mais sobre a realidade das UCs no Brasil e trazer um pouco da experiência do Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PEIC), localizado no litoral sul do Estado de São Paulo. O PEIC é um lugar paradisíaco e preservado, bastante visitado pelo público em geral. Lá comunidades tradicionais, que moram na ilha há séculos, hoje travam uma luta pela sua sobrevivência, reprodução cultural e permanência no território.


As UCs são uma das principais estratégias internacionais de conservação do patrimônio ambiental e cultural. No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) regulariza tais territórios, designando diferentes tipos e categorias de áreas protegidas subdivididas em dois grandes grupos: as de proteção integral, cujo objetivo é de preservação integral da biodiversidade, permitindo apenas o uso indireto dos recursos naturais presentes (por exemplo pesquisa, turismo e educação ambiental); e aquelas de uso sustentável, que contam com a presença de populações nesses territórios, de forma que se busca assegurar a sustentabilidade ambiental e a reprodução do modo de vida de comunidades tradicionais.


Acontece que, no histórico brasileiro, o processo de implantação das UCs seguiu uma lógica “top-down”, ou seja, de cima para baixo, de forma impositiva. Muitos parques de proteção integral foram implementados em territórios de populações tradicionais que dependem diretamente da natureza, e por isso impactando diretamente seu modo de vida. As populações tradicionais são internacionalmente reconhecidas como aliadas da preservação ambiental, além de possuir direitos fundamentais reconhecidos por convenções e tratados internacionais, a exemplo da Convenção Internacional do Trabalho (OIT nº169), ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 5.051 de 2004, que determina que quaisquer decisões tomadas sobre seus territórios necessitam obrigatoriamente e previamente da consulta e aprovação das populações locais. Na prática, infelizmente, esse processo de diálogo muitas vezes não ocorre.


Uma alternativa sustentável de sobrevivência para comunidades residentes em UCs tem sido o Turismo de Base Comunitária (TBC), que integra atividades turísticas focadas na valorização da história e cultura local com a preservação ambiental. Neste sentido, o TBC representa uma oportunidade para amenizar conflitos territoriais, destacando a importância das comunidades no interior de UCs e privilegiando agentes sociais com pequeno capital econômico em sistemas cooperativos, solidários e sustentáveis. Ou seja, o TBC é uma atividade econômica associada às práticas produtivas de baixo impacto, como a agricultura de subsistência, a pesca e o artesanato protagonizada pelas comunidades. Além disso, o TBC pode ser entendido como uma estratégia de luta pelos direitos fundamentais dos povos tradicionais de permanência no território.


A imagem mostra três pescadores manuseando uma rede de pesca no mar.

Pesca artesanal feita pelos comunitários do Parque Estadual da Ilha do Cardoso (Fonte: Noeli Neves com licença CC BY SA).


No PEIC, essa forma de turismo funciona há mais de 20 anos, organizada e protagonizada de forma comunitária em parceria com a UC. As associações locais oferecem às escolas, grupos, excursões e turistas opções de trilhas e passeios pela natureza, oficinas e demonstrações de práticas tradicionais como a pesca artesanal e o artesanato, educação ambiental em parceria com técnicos e monitores ambientais, alojamento e alimentação de culinária caiçara. Por conta da realidade restritiva de Parque, as comunidades têm investido mais na prática do TBC para sua sobrevivência, sustentabilidade e reprodução do modo de vida caiçara.


Comunitária e monitora ambiental, Noeli Neves acompanha um grupo de estudantes no manguezal do Parque Estadual da Ilha do Cardoso.

Comunitária e monitora ambiental, Noeli Neves acompanha um grupo de estudantes no manguezal do Parque Estadual da Ilha do Cardoso (Fonte: Noeli Neves com licença CC BY SA).


O processo de planejamento, implantação e gestão das UCs ocorre por meio do poder público (federal, estadual ou municipal) com mecanismos e instrumentos legais de governança (conselhos gestores, planos de manejo) que garantem a manutenção, participação, efetividade e recursos para a promoção do desenvolvimento sustentável da UC. Porém, acontece que grande parte das UCs no Brasil carecem de infraestrutura e recursos necessários para uma gestão efetiva. Frente a isso, somando a precarização dos investimentos do Estado às UCs e a crescente onda do neoliberalismo latino-americano, tende-se a transferir para grandes grupos privados o uso público das UCs. Este é o caso das concessões e parcerias público-privadas, incentivadas pelo ICMBio no âmbito nacional e no Estado de São Paulo dada pela Lei nº 16.260/2016, conhecida como a “lei das concessões”.


No dia 29 de junho de 2016 o Estado de São Paulo aprovou, em regime de urgência, e sob forte pressão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, a “lei das concessões”, que trata da regulamentação de 25 Parques Estaduais (incluindo o PEIC), cedendo as concessões de usos e serviços por 30 anos à iniciativa privada. A lei tornou-se polêmica por não ter sido amplamente discutida, especialmente nos municípios que teriam, a princípio, seus parques cedidos à exploração privada. Foi contestada por ambientalistas e organizações locais por ter um caráter abrangente, não participativo e que não atende à especificidade e às características de cada UC. Portanto esse processo acaba seguindo uma lógica mercadológica e de interesses políticos que contradiz os objetivos originais das UCs de preservação do patrimônio ambiental e cultural para a promoção do desenvolvimento sustentável e melhoria da qualidade de vida local.


Como consequência, esse conflito de atividades econômicas empresariais e mercadológicas sobre as atividades produtivas comunitárias e tradicionais podem agravar a situação de desigualdade social nessas localidades, além de impactar o modo de vida e a própria permanência da comunidade em seu território.


No meu projeto de conclusão de curso, finalizado em 2017 no Instituto Oceanográfico da USP, entrevistei moradores de todas as sete comunidades tradicionais caiçaras da Ilha do Cardoso, e analisei o quanto o TBC é importante socioeconomicamente e culturalmente para as comunidades, além de analisar a percepção dos comunitários frente às concessões para empresas privadas. Observei que o TBC hoje representa grande parte da renda das comunidades. Ele incentiva e reproduz práticas e saberes tradicionais, como pratos da culinária tradicional caiçara, histórias locais, festas culturais com o estilo musical caiçara chamado fandango, entre outras coisas. Na visão dos comunitários, todo esse riquíssimo conhecimento e cultura pode ser impactado e substituído pelo modelo de concessões, principalmente por se tratar de um processo impositivo, sem participação e transparência em que as comunidades não estão fazendo parte.


Portanto, proponho a reflexão: até onde as concessões e parcerias público-privadas, tão amplamente difundidas e incentivadas no contexto político atual do Brasil, podem estar ameaçando a sustentabilidade de comunidades tradicionais e suas atividades como o TBC? Por que permitir que empresas privadas de grande porte lucrem sobre o parques públicos e realizem atividades que já são feitas pelas comunidades tradicionais e associações locais? Por que carecemos de incentivo a parcerias público-comunitárias em UCs, favorecendo o desenvolvimento local? Nos cabe agora acompanhar o processo ativamente e exigir que convenções e tratados internacionais sejam cumpridos, incentivando a participação da comunidade local para a melhor aplicação dessas parcerias.

 

Sobre o autor:


Meu nome é Caio Tancredi, sou oceanógrafo formado pela Universidade de São Paulo. Desde pequeno sou amante dos oceanos, surfista e neto-bisneto de pescadores e marinheiros. A vivência em comunidades tradicionais me despertou um interesse muito grande em conhecê-las melhor e fazer parte da luta que travam para garantia de seus direitos fundamentais aliada à preservação ambiental.




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