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Vórtices: física e biologia conversam?

Por Filipe Pereira

Ilustração: Joana Ho


Nós, seres humanos, somos animais terrestres. É natural, portanto, que tenhamos maior familiaridade com os ambientes continentais do que com os oceânicos. Por isso, para mostrar como a física dos oceanos pode afetar a vida dos organismos que nele vivem, principalmente dos produtores primários, vou iniciar nossa discussão fazendo um paralelo entre os giros subtropicais oceânicos e as florestas terrestres.


Os produtores primários, como plantas e algas, também chamados de organismos fotossintetizantes, são essenciais para o funcionamento da maioria das cadeias alimentares no planeta. Eles são os únicos seres vivos capazes de transformar a energia da luz do sol na energia química que move a vida na Terra ao produzirem matéria orgânica (comida) por meio da fotossíntese.


Para realizar a fotossíntese, eles precisam de luz, água, gás carbônico e nutrientes. Nos ambientes terrestres, a incidência de luz geralmente não é um grande problema, a disponibilidade de gás carbônico muito menos. O que limita o crescimento das plantas terrestres é, usualmente, a disponibilidade de água e de nutrientes. Em condições ideais, a água e os nutrientes estão ao alcance das raízes das plantas e elas podem assim prosperar. Já no ambiente marinho, os principais organismos fotossintetizantes são, em sua maioria, microscópicos e transportados pelas correntes, conhecidos como fitoplâncton. Claro que água não é um problema no mar, gás carbônico também não. Os fatores limitantes para o crescimento do fitoplâncton marinho acabam sendo, portanto, luz e nutrientes.


A água do mar tem a propriedade de absorver a luz de forma muito eficiente. A poucos metros de profundidade, o oceano já é um ambiente escuro e, portanto incapaz de sustentar organismos fotossintetizantes. Ou seja, a única zona habitável para o fitoplâncton é uma fina camada superficial que raramente excede os 100 m de profundidade e é chamada de zona eufótica, onde há luz suficiente para sustentar a fotossíntese destes organismos.


Os nutrientes são rapidamente consumidos pelo fitoplâncton na zona eufótica e portanto tem baixa concentração na superfície dos oceanos. Por outro lado, parte da matéria orgânica produzida afunda e é remineralizada (decomposta) e transformada em nutrientes novamente em maiores profundidades. Como não há um grande consumo de nutrientes abaixo da zona eufótica, estes são encontrados em maiores concentrações em maiores profundidades.


Esquema mostrando a distribuição de água, luz e nutrientes no continente e no oceano. A fotossíntese ocorre em regiões bem iluminadas tanto em terra quanto nos oceanos. A diferença é que no continente o transporte vertical de nutrientes é feito pelas próprias plantas, enquanto que no oceano, este depende de processos físicos para trazer nutrientes para a zona eufótica. MO denota matéria orgânica, e H2O representa água no estado líquido. Licença CC 4.0 BY-SA.


Veja, temos um problema aqui: nos grandes giros subtropicais, que correspondem à maior parte dos oceanos, e estão ilustrados na figura abaixo, a maior concentração de nutrientes está em profundidade, longe do alcance dos produtores primários. Ou seja, as concentrações superficiais de nutrientes são baixas e portanto não há um grande crescimento das comunidades fitoplanctônicas. O que faz com que os giros sejam menos produtivos que as regiões costeiras, por exemplo.


Mapa global de clorofila superficial medida por satélite (SeaWiFS), as áreas circuladas em vermelho mostram os grandes giros subtropicais com concentrações mais baixas de clorofila. A concentração de clorofila é uma forma indireta de estimar a quantidade de fitoplâncton presente na água. Adaptado de https://earthobservatory.nasa.gov/images/4097/global-chlorophyll. NASA.


Como a luz é abundante na superfície e as maiores concentrações de nutrientes estão abaixo da zona eufótica, apenas fenômenos físicos que estejam ocorrendo nessas regiões podem alterar essas condições ambientais. Não tem como fazer a luz ir mais fundo, logo, só quando as águas ricas em nutrientes são levadas de alguma forma à superfície pode haver o aumento da taxa de crescimento do fitoplâncton. Estas condições, de aumento na concentração de nutrientes na superfície, permitem que o ecossistema se torne mais produtivo relativamente ao estado médio, já discutido anteriormente. É aqui que a física dos oceanos é fundamental para entender melhor como esses organismos podem prosperar nestes ecossistemas.


Podemos pensar que os processos físicos condicionam o ambiente onde esses organismos vivem. Quando falamos em processos físicos estamos nos referindo basicamente aos movimentos da água. Esses movimentos são horizontais: transportando o fitoplâncton para regiões mais ou menos favoráveis para o seu crescimento ou aprisionando-o em uma área limitada; e verticais: podendo alterar as concentrações de nutrientes disponíveis para o fitoplâncton se as velocidades forem para cima, ou empurrando esses organismos para fora da zona eufótica se as velocidades forem para baixo.


Vários processos físicos podem afetar a ecologia nas camadas superficiais do oceano. Um dos mecanismos mais estudados são os vórtices de mesoescala. Estes seriam os fenômenos responsáveis pelo tempo oceânico (aqui tempo se refere à previsão do tempo mesmo!) , podendo ser entendidos a grosso modo, como a versão marinha dos furacões e tufões atmosféricos. Estas estruturas têm tamanho da ordem de centenas de quilômetros, são comuns nos oceanos, vistos facilmente a partir de dados de satélite de temperatura, de altura do nível do mar e inclusive de concentração de clorofila, o pigmento responsável pela fotossíntese nos produtores primários. Os vórtices são áreas de alta ou baixa pressão oceânica e consistem de movimentos circulares, estando em balanço geostrófico, ou seja, tem tamanho suficiente para que sua dinâmica seja governada pela rotação da Terra. Eles são classificados como anticiclones quando giram no sentido oposto ao da rotação da Terra, sendo centros de alta pressão, ou ciclones quando giram no mesmo sentido da Terra, sendo centros de baixa pressão.


Esquema de vórtices ciclônicos e anticiclônicos no hemisfério sul. F é a força gerada pela diferença de pressão entre o centro e a borda do vórtice (sempre aponta para pressão mais baixa), essa força é equilibrada pela força C gerada pela rotação da Terra (força de Coriolis). Esse é o balanço geostrófico, e gera velocidades V que giram em torno dos centros de alta (anticiclone) e baixa (ciclone) pressão. A pressão no centro do vórtice implica em velocidades verticais (w) para baixo (seta vermelha) no anticiclone, e para cima (seta azul) no ciclone. A escala vertical da elevação da superfície está exagerada para melhor visualização. Licença CC 4.0 BY-SA.


Ok, mas como esses fenômenos influenciam na taxa de crescimento do fitoplâncton? Olha só, um centro de alta pressão implica num “acúmulo” de água no vórtice, esse peso empurra a água para baixo, fazendo com que a água rica em nutrientes seja levada ainda mais para o fundo; inibindo o crescimento do fitoplâncton. Já na situação oposta, num vórtice ciclônico, a baixa pressão gera velocidades verticais para cima, trazendo águas mais ricas em nutrientes para regiões mais superficiais e mais iluminadas, podendo favorecer o crescimento desses organismos.


Os fenômenos que apresentei anteriormente seriam as situações ideais mostradas nos livros de oceanografia, mas não é incomum encontrarmos vórtices ciclônicos com baixa produtividade e anticiclônicos com alta… 😅😅😅. A interação do vórtice com o vento, por exemplo, pode inverter o sinal das velocidades verticais nos primeiros metros da coluna de água, gerando um efeito oposto ao esperado: vórtices ciclônicos com velocidades verticais para baixo e anticiclônicos com velocidades verticais para cima!


Outros fenômenos de menor tamanho que comumente ocorrem nas bordas dos vórtices, chamados de fenômenos de sub-mesoescala, podem intensificar, e muito, as velocidades verticais nas bordas dos vórtices e estes apresentarem maiores concentrações nas bordas que em seu centro. O que queremos mostrar com essa “enxurrada” de informação é que o oceano é um sistema complexo e caótico. Vários processos estão acontecendo ao mesmo tempo, e a soma de todos esses fenômenos resulta naquilo que observamos na natureza.


Tahhh, muito legal isso tudo, né? Mas para quê entender isso? Lembre-se que esses organismos são a base das cadeias alimentares marinhas. Imagine os giros subtropicais como grandes desertos, vórtices de mesoescala seriam oásis onde há elevada produção primária. Eles acabam atraindo outros organismos maiores, como os peixes devido à maior disponibilidade de alimento. Entender a dinâmica desses processos pode ser importante para o manejo de pesca em algumas regiões, por exemplo. Além disso, a fotossíntese dos produtores primários marinhos é uma forma importante de sequestro de carbono da atmosfera, (assim como as florestas) sendo um fator chave na compreensão do ciclo do carbono no nosso planeta e, portanto, tendo efeitos significativos no clima. No fim das contas, a compreensão da distribuição e dinâmica ecológica do fitoplâncton marinho é diretamente afetada pelos movimentos do oceano, e tem implicações importantes sobre as atividades humanas e com certeza afetam nosso modo de vida.


*os oceanos têm profundidade média de 4 km


 

Sugestões de leitura:


McGillicuddy Jr, D.J., 2016. Mechanisms of physical-biological-biogeochemical interaction at the oceanic mesoscale. Annual Review of Marine Science, 8, pp.125-159. (doi:10.1146/annurev-marine-010814-015606)


Mahadevan, A., 2016. The impact of submesoscale physics on primary productivity of plankton. Annual Review of Marine Science, 8, pp.161-184. (doi:10.1146/annurev-marine-010814-015912)

 

Sobre o autor:

Filipe é baiano, natural de Alagoinhas. Sempre foi curioso para entender como a Terra funciona e desde a terceira série do ensino fundamental tinha decidido ser cientista. Começou seus estudos em biologia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), mas logo percebeu que buscava uma formação mais interdisciplinar. Foi para a Universidade Federal da Bahia (UFBA) estudar oceanografia, onde foi encorajado a ir para a Universidade de São Paulo (USP), onde o curso teria uma base mais forte em física. Formou-se oceanógrafo em 2017 pela USP, e atualmente faz doutorado em Oceanografia Física no Programa de Dupla Titulação em Ciências do Mar entre a USP e a Universidade de Massachusetts Dartmouth. Estuda principalmente dinâmica de frentes oceânicas e costeiras em mesoescala e sub-mesoescala, e seus efeitos na ecologia planctônica. Além de apaixonado pela Terra, adora aquarismo e música, sendo cantor do CoralUSP Todo Canto como barítono.



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