Genética, cultura e comportamento de cetáceos
- yonaragbf
- 19 de jun.
- 6 min de leitura
Você sabia que as diferenças culturais podem influenciar na genética de baleias e golfinhos?
Por Maysa Miriana Garcia da Silva

Você sabia que os cetáceos, popularmente conhecidos como baleias e golfinhos, possuem uma cultura muito complexa? A cultura inclui nosso jeito de agir, de comer e de falar, por exemplo. Determinadas populações de cetáceos têm um dialeto específico para comunicação e cada integrante tem um nome próprio dentro do seu grupo!
A cultura dos cetáceos segue um padrão parecido com a humana, onde o local ou o grupo no qual o indivíduo está inserido afeta seus hábitos alimentares, seu modo de falar e seus comportamentos. Essa característica é muito semelhante às línguas que temos. Uma pessoa que nasce no Brasil fala português brasileiro, enquanto uma pessoa de Portugal também fala português, mas de Portugal.
A organização social e comportamento também é passada de geração em geração, assim como acontece na população humana, moldando suas técnicas de obtenção de alimento, desde o método de caça até o tipo de presa escolhida, além do comportamento e o modo de comunicação entre os indivíduos. Essas características são adquiridas através da herança cultural, da mãe para o filhote e/ou entre os indivíduos de um mesmo grupo ou de grupos diferentes que se encontram no oceano.

Mas o que é herança cultural? Primeiro vamos relembrar que Genética é a ciência que estuda como se dá a transmissão, de pais para filhos, das características que compõem os seres vivos, ou seja, como são suas células, como é a forma e funcionamento de seus tecidos e órgãos. Todas essas informações e características genéticas estão armazenadas no que chamamos de DNA - sigla para ácido desoxirribonucleico (deoxyribonucleic acid, em inglês). Mesmo espécies muito diferentes de seres vivos, podem ter o DNA parecido, como entre os seres humanos e os chimpanzés, que compartilham 99,6% do DNA. Ou seja, o que nos difere desses animais são alterações de apenas 0,4% nessa molécula.
Agora, finalmente, a herança cultural é composta pelos fatores que podem alterar nossa genética, mesmo não sendo herdados de maneira direta pelo DNA. Para entender esse ponto, precisamos entender melhor um conceito criado por um naturalista, geólogo e biólogo britânico muito conhecido, chamado Charles Darwin: o conceito de seleção natural. Na seleção natural, Darwin afirma que o organismo mais adaptado ao ambiente é aquele que vai sobreviver e passar seus genes adiante na espécie. Isso significa que o ambiente no qual um ser vivo está inserido pode selecionar características vantajosas para sua sobrevivência.

Logo, a questão de aprendizagem cultural e todas as diferenciações que ela gera, bem como a passagem de caracteres entre gerações levou cientistas a pensarem se esses fatores afetariam a especiação* dos cetáceos. Isso porque as pressões seletivas de genes não seriam as mesmas em diferentes populações de uma mesma espécie, já que elas dependem diretamente dos costumes de cada grupo e as características transmitidas culturalmente afetam de forma menos óbvia a herança genética, por não serem diretas e imediatas. O que ocorre na verdade é que certos comportamentos favorecem determinadas características genéticas, então indivíduos com essas características têm mais sucesso na obtenção de alimento, migração e reprodução, por exemplo, passando seus genes favoráveis para as próximas gerações. Portanto, em uma escala de tempo longa, pode haver uma alteração genética significativa ao ponto que tais indivíduos são considerados uma outra espécie. Esses aspectos despertaram o interesse da comunidade científica em investigar a relação direta dos genes com a herança cultural.
A fim de trazer uma perspectiva real baseada nessas questões, há um exemplo interessante quando observamos as Orcas (Orcinus orca). As diferentes populações dessa espécie já possuem características físicas distintas dependendo da localidade, chamadas ecótipos da espécie, que são alterações físicas desses animais em decorrência da seleção natural, e que servem como identificação do grupo, como pode ser observado nas imagens abaixo. É importante ressaltar que ao falarmos de ecótipos nos referimos a diferenciações físicas e comportamentais observadas numa mesma espécie, pois a diferenciação ainda não afetou significativamente o DNA dessas populações.

Uma pesquisa, realizada por Andrew Foote e colaboradores, publicada na Revista Nature em 2016, avaliou o DNA de orcas e revelou que existem diferenças moleculares, vistas através do DNA satélite de indivíduos de diferentes grupos, que tinham certa associação com a dieta, habitat e isolamento reprodutivo**, capazes de sustentar a ideia de criação de novas espécies para classificar as diferentes populações desse golfinho. Há também algumas pesquisas sendo feitas que indicam haver uma separação de ecótipos de golfinhos-nariz-de-garrafa em diferentes espécies, como a realizada por Ana P. B. Costa e colaboradores e publicada no Zoological Journal em 2022. Levando em conta tais pesquisas, é possível notar que, dentro de algumas espécies de cetáceos, há uma grande possibilidade de estarmos presenciando uma diferenciação evolutiva entre indivíduos de uma mesma espécie, capaz de levar à separação dessas populações em duas ou mais espécies diferentes, em decorrência da seleção natural.

Entender esses conceitos e desenvolver pesquisas nessa área é muito importante para entendermos como funciona a evolução, porque entendendo como as formas de vida foram se modificando e se adaptando no ambiente, somos capazes de compreender a história do nosso planeta e a nossa própria história. Tais estudos genéticos também nos auxiliam a entender como esses processos ocorrem e, portanto, podemos estimar, mesmo que com pouca precisão, as perspectivas futuras das espécies viventes.
*A especiação aqui citada seria a separação de indivíduos considerados de uma mesma espécie em duas novas espécies diferentes
**O isolamento reprodutivo representa a incapacidade de espécies diferentes de se reproduzirem entre si, ou, caso aconteça, não produzirem descendentes férteis.
Referências:
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COSTA, Ana P. B. et al. The common bottlenose dolphin (Tursiops truncatus) ecotypes of the western North Atlantic revisited: an integrative taxonomic investigation supports the presence of distinct species. Zoological Journal of the Linnean Society, v. 196, n. 4, p. 1608-1636, 2022. - Link: https://academic.oup.com/zoolinnean/article/196/4/1608/6585199
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Sobre a autora:

Maysa é uma estudante do curso de Bacharelado e Licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo que elaborou este texto como projeto da disciplina “Divulgação Científica e Cultura Oceânica”, ministrada pela Prof.ᵃ Dr. ᵃ Cláudia Namiki, do curso de Bacharelado em Oceanografia do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. Sempre teve interesse pela área de biologia marinha e ciências do mar, assim como pela divulgação científica, então começou a buscar matérias e pesquisas relacionadas a tais áreas, que foi como encontrou a disciplina que gerou este trabalho. Durante a graduação também descobriu um interesse por herpetologia e atualmente faz parte de um laboratório na área no IB-USP. Em paralelo, o gosto pelo mar segue presente na realização de monitorias de visitas no Centro de Biologia Marinha da USP, através de uma bolsa de extensão universitária oferecida pela universidade.
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