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Como minha curiosidade me levou a publicar na Nature


Ilustração: Joana Ho


Fazer pesquisa não é um mar de rosas e acho que quem está desenvolvendo uma sabe bem que muitos obstáculos, erros, burocracias etc., podem ocorrer durante o caminho. No texto “Os desafios para chegar até aqui”, eu contei um pouquinho sobre o making of da minha pesquisa durante o mestrado, onde abordo diversas situações que tive que contornar para conseguir entregar minha dissertação. E dentre estas situações, uma delas trouxe um plot twist bem positivo pra mim. Então senta que lá vem história! (Ixi, acho que com essa frase entreguei que já passei dos trinta rsrsrsrs).


Minha pesquisa de mestrado consistiu, basicamente, no estudo do comportamento natatório da associação entre uma diatomácea e um ciliado, a fim de avaliar suas possíveis consequências ecológicas, por meio de filmagens em um sistema óptico tridimensional. Foi um estudo muito interessante, mas que teve vários desafios, como eu já contei no outro post. Entre esses desafios, um deles foi na etapa de experimentos, onde, após todo o sistema óptico estar pronto, alinhado, computadores em “perfeito” funcionamento, eu dependia que os organismos estivessem presentes no ponto de coleta no dia que me organizei. Mas não era bem assim. Às vezes, não aparecia nenhum exemplar pra me dar esperança ou apareciam poucos, insuficientes para analisar os dados estatisticamente. O jeito era me preparar e realizar coletas diárias até que os organismos surgissem e, então, fazer os experimentos.


Em um desses dias, coletei as amostras de plâncton e comecei a triar as amostras no laboratório. Neste dia, não havia exemplares dos organismos que eu precisava para os meus experimentos. Depois de um tempo procurando, resolvi explorar a amostra, para ver o que mais de interessante poderia ter. Então a coloquei em um microscópio com maior resolução para explorar organismos bem menores que não eram possíveis identificar na lupa. A amostra estava linda, super diversa, com várias diatomáceas, dinoflagelados que lembravam naves espaciais, ciliados, entre outros, até que eu vi algo que me chamou a atenção. Uma diatomácea movimentando-se em associação com um ciliado. A diatomácea em questão era a Fragilariopsis doliulos e o ciliado era a Salpingella sp. E como eu sabia que não havia muitos registros na literatura sobre aquela associação, resolvi conectar uma super câmera (que é capaz de filmar os batimentos dos cílios de organismos diminutos) ao microscópio e filmar o deslocamento da associação. Na hora eu pensei “vou deixar registrado. Quando eu tiver tempo, posso trabalhar nesse material e, quem sabe, escrever uma nota para alguma revista científica”. Contei para meu orientador sobre os registros, deixei os arquivos guardados e voltei minha atenção para minha dissertação.


Diatomácea Fragilariopsis doliulos em associação ao ciliado Salpingella sp.

Fonte: Vincent et al, 2018/ CC BY 4.0


Um tempo depois, meu orientador fez uma viagem para França para visitar um laboratório que desenvolvia trabalhos compatíveis com a linha de pesquisa que ele estava desenvolvendo aqui no Brasil. Nesta parte da história, eu não sei bem como aconteceu, mas uma pesquisadora que havia participado de uma das expedições do Tara Oceans ficou sabendo que eu tinha feito aqueles registros curiosos e marcou uma reunião com meu orientador para conversar sobre o meu material. Em uma dessas expedições, ela e sua equipe identificaram a mesma associação que eu vi aqui nos mares do Brasil. Essa equipe havia desenvolvido um trabalho detalhado sobre esses organismos, com análises filogenéticas, microscopia eletrônica de varredura, entre outros. Escreveram o artigo científico e enviaram para a revista The ISME Journal: Multidisciplinary Journal of Microbial Ecology, que é publicada pela Nature, uma das revistas de maior impacto na ciência. Sempre que você envia um artigo científico para uma revista de qualidade, ele passa por uma série de revisões e, a partir dessas revisões, a revista decide se vai publicar o artigo ou não, ou se vai publicar, mas precisa de correção em certas partes, e no caso deste trabalho que eles enviaram, os revisores não aceitaram por um detalhe. Como era uma associação que ainda não tinha sido observada em organismos vivos e os únicos registros do artigo em questão eram dos organismos fixados, os revisores disseram que a associação poderia ser um artefato. Ou seja, ao jogar os reagentes para preservação da amostra (substâncias que adicionamos imediatamente após a coleta da amostra, como álcool 70% ou formaldeído, a fim de conservar tudo o que foi coletado exatamente naquele momento), os organismos poderiam ter se unido, indicando uma falsa associação, que não ocorria de verdade na natureza.


Neste ponto, o grupo francês não tinha o que fazer. Ou arrumavam uma prova de que aquela associação existia de verdade ou todo aquele trabalho só seria publicado quando houvesse provas de que era uma associação verdadeira. E é aqui que eu entro. A pesquisadora então propôs uma colaboração. Eu e meu orientador participaríamos como coautores do artigo, ao ceder o material e assim, conseguiríamos publicar o trabalho a partir dessa parceria. Foi uma proposta muito boa, pois eu ainda não tinha artigos científicos publicados e, no início da carreira, conseguir um artigo em uma revista de grande impacto seria fantástico! Então cedemos o material, o artigo foi aceito e o vídeo que viraria uma nota para uma revista acabou fazendo parte de um artigo científico de uma equipe de grandes pesquisadores.


Aqui eu poderia terminar o texto com a moral da história “Há males que vem para o bem”. Mas toda essa história me fez refletir sobre a essência da ciência. Pra mim, a essência da ciência é a curiosidade. Ser cientista é ser curioso. É querer descobrir o por quê das coisas e inventar mil maneiras para chegar a uma resposta. É querer entender como os sistemas, processos, funcionam. É explorar e fazer descobertas. É pensar, refletir, estudar, criar hipóteses. Então, esse vídeo que fiz em um dia que as coisas deram “errado” no meu trabalho de mestrado me fez lembrar por quê eu quis me tornar uma bióloga/ pesquisadora. E ao mesmo tempo me fez perceber que muito dessa essência tem sido perdida, pois hoje entramos num ritmo de produtividade que é exaustivo, que afasta as pessoas que estão chegando, que exclui quem não mantém o ritmo, que faz com que muitos abandonem a carreira por problemas de saúde mental. E isso está muito ligado ao nosso modo de avaliar a qualidade da instituição ou do pesquisador. Mudar isso não é algo simples, mas é preciso.


Como diz Gundula Bosch, pesquisadora da Universidade Johns Hopkins, em seu artigo “Train PhD students to be thinkers not just specialists” (“Treinar estudantes de doutorado para serem pensadores e não apenas especialistas”), “estudantes devem ser apresentados ao processo científico como ele é - com limitações e potenciais equívocos, aspectos divertidos, descobertas por acaso e alguns erros hilários”.


E para você, qual é a essência da ciência?


Referências:


BOSCH, Gundula. Train PhD students to be thinkers not just specialists. Nature, v. 554, n. 7690, p. 277-278, 2018. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-018-01853-1


VINCENT, Flora J. et al. The epibiotic life of the cosmopolitan diatom Fragilariopsis doliolus on heterotrophic ciliates in the open ocean. The ISME journal, v. 12, n. 4, p. 1094-1108, 2018. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41396-017-0029-1



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