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Menos a Luiza, que está na Antártica

O que a integrante do Bate-Papo com Netuno foi fazer na Antártica?



Ilustração de Alexya Queiroz


Com o risco de cair na generalização, ouso afirmar que a Antártica vive no imaginário de todo oceanógrafo. Desde o início da graduação, seja nas disciplinas, nas histórias dos professores ou mesmo de colegas, ouvimos falar do continente antártico quase como algo mítico. Essas aulas, histórias e ensinamentos foram criando em mim um desejo profundo de, um dia, independente do meio (seja pela pesquisa, turismo ou tal qual uma grande aventureira que sai velejando por aí), conhecer a Antártica. Um sentimento estranho, mais para uma utopia do que uma grande meta de vida, mas que, de alguma forma, moveu-me a realizá-lo.


E realizá-lo só foi possível pela confiança creditada a mim pela minha orientadora, a Profª Camila Negrão Signori, que, inclusive, já relatou ao Bate Papo com Netuno sua experiência de mergulhar em mar profundo por meio do submersível Alvin. No meu mestrado, depois de algumas mudanças, decidi trabalhar com amostras já existentes de micro-organismos antárticos. As amostras foram procedentes de embarques polares realizados pela minha orientadora através do Projeto Ecopelagos coordenado pelo Prof.º Dr.º Eduardo Secchi da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e financiado pela CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O projeto é desenvolvido no âmbito do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR) e tem como objetivo o estudo integrado dos diversos compartimentos da biota marinha, desde as bactérias até os grandes mamíferos, e o efeito das mudanças climáticas sobre eles.


Mais especificamente, minha pesquisa de mestrado dentro deste projeto se propõe a investigar a diversidade (quem) e inferência metabólica (o que fazem) da estrutura das comunidades microbianas (bactérias e arqueias) na região da Península Antártica Ocidental no verão austral de 2016 e determinar os principais fatores ambientais que as influenciam. Uma vez inserida no PROANTAR por meio de um projeto de pesquisa, as chances de ir para Antártica sobem de 1% para 50%. Meio caminho andado. Mas ainda faltavam os outros 50% mais importantes: uma vaga disponível para a expedição Antártica e a possibilidade do convite. E, depois de muito tentar controlar as (já altíssimas) expectativas, foi o que aconteceu. A partir daí, começou minha jornada na Operação Antártica XLI. Minha função embarcada foi coletar água superficial e profunda, por meio de garrafas acopladas em uma Rosette, de diversas estações oceanográficas pré-estabelecidas, e filtrá-la para que toda a microbiota ficasse retida em filtros específicos que depois seriam analisados em laboratórios. Mas eu já vou chegar lá.


Antes, para que eu estivesse apta a embarcar nesta expedição, passei (com dezenas de pesquisadores que também tinham a possibilidade de ir para a Antártica) pelo Treinamento Pré-Antártico (TPA) da Marinha do Brasil, responsável por toda a logística do PROANTAR, na Ilha de Marambaia – Rio de Janeiro. Durante uma semana, passamos por testes de aptidão física e também por palestras sobre o continente austral ministradas por diversos profissionais, desde médicos a geopolíticos. Uma vez aprovada, comecei a preparação do material que deveria ser embarcado para suprir todas as necessidades metodológicas da pesquisa. No meu caso: bomba peristáltica (para filtrar a água coletada), filtros, luvas, água destilada... Este material é despachado meses antes da expedição começar e esse planejamento é um belo exercício mental ao tentar prever o imprevisível para que, naquelas caixas, meses depois, eu encontre a solução de qualquer problema que possa surgir, seguindo a máxima de que em alto mar “quem tem um, não tem nenhum”.


Foto 1. Crachá de identificação do pesquisador e projeto do Treinamento Pré-Antártico. (Foto de Luiza Soares)


Depois do material, tem o checklist dos exames médicos. Além do treinamento de aptidão física, temos que comprovar que estamos com a saúde ótima. Afinal, são 30 dias de embarque em um continente com condições extremas de frio e vento. Mesmo que tenhamos um médico e um dentista a bordo à disposição da tripulação, a ideia é que não precisemos fazer uso de seus serviços. Sendo assim, os exames incluem hemograma, teste de esforço, audiometria, eletrocardiograma e, claro, vacinação em dia.


Documentação check, chega a hora de partir.


Foto 2. Luiza Soares prestar a embarcar na aeronave KC-390 da Força Aérea Brasileira (FAB). (Foto de Luiza Soares)


Devo dizer que a ida até a Antártica já é uma viagem à parte. O roteiro incluiu São Paulo – Rio de Janeiro (em pleno carnaval!), onde encontrei, pela primeira vez, parte da equipe de pesquisadores para embarcarmos na aeronave KC-390 da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo a Pelotas, no Rio Grande do Sul. Chegando em Pelotas, experimentamos o vestuário específico emprestado pela Marinha para aguentar as baixas temperaturas do continente gelado e suas rajadas de vento e chuva. De lá, partimos para Punta Arenas, no Chile, uma cidade portuária onde o Navio Polar Almirante Maximiano fica atracado para receber as equipes científicas. Após passar pelos belíssimos canais chilenos, começamos a travessia no Mar de Drake, o mais temido de todo o globo por causa das suas fortes correntes.

Foto 3. Foto de foto a equeipe científica reunida em frente ao Navio Polar Almirante Maximiano. (Foto de Elisa Seyboth)


Para mim, que nos primeiros anos cursando oceanografia passava mal nas aulas práticas mesmo com a embarcação parada, atravessar o Drake sem grandes enjoos foi a constatação de uma baita evolução (claro que eu estava com meu estoque de remédios a postos!). Além disso, pegamos um tempo calmo durante os três dias de navegação até chegarmos na Península Antártica, onde iniciamos, finalmente, os nossos trabalhos.


Chegar na Antártica, depois de meses de preparação e anos de sonho, beirou o surreal. A paisagem que encontrei foi uma prévia do que veria ao longo da expedição. Mar agitado, volumoso, parecia denso de tão escuro em contraste com a espuma branca da crista das ondas gerada pelo atrito com os ventos fortes. O céu, em oposição, era de um branco intenso e sua brancura se confundia com os cumes nevados dos glaciares. Era preciso olhar duas vezes para distinguir onde terminava o cume e começavam as nuvens. Ventos tão fortes que poderiam me arrastar, causavam uma sensação térmica muito mais baixa do que realmente estava.


Foto 4. Uma das paisagens antárticas sob o céu nublado. (Foto de Luiza Soares)


Nessas condições, o trabalho foi dividido em turnos: diurno e noturno. Eu fiquei com o turno noturno, trabalhando das 19h às 7h. Como o embarque ocorreu no final de verão, as noites antárticas estavam se prolongando cada vez mais, escurecendo por volta das 21h e amanhecendo por volta das 6h. Esses finais de tarde e inícios de manhã eram lindos de apreciar! Costumava passar longos minutos entre as estações de coletas e filtrações contemplando a paisagem. Nesses momentos, quase meditativos, observando os primeiros raios de sol aparecerem e tingirem o mar escuro de azul, o céu de roxo e os glaciares de branco brilhante, quando o vento, embalando as ondas numa dança, convidava as aves a se juntarem, o cansaço batia, mas a sensação de estar exatamente onde eu deveria (e queria) estar era grande. Eu esperava ansiosamente por esses momentos, queria gravar todos os detalhes do que estava vendo e vivenciando, recapitulava todos os passos que me fizeram chegar até ali.


Foto 5. Paisagem vista da proa do navio Navio Polar Almirante Maximiano para a Baía do Almirantado. Dia ensoladorado e de mar calmo. (Foto de Luiza Soares)


Durante as longas noites de trabalho, onde todos ficavam a postos e atentos, era também quando aconteciam as maiores interações entre as equipes de projeto. Cada qual com seu repertório pessoal e profissional, sempre era uma ótima oportunidade para trocar experiências de vida, conhecer melhor os colegas de trabalho e, claro, ouvir as empolgantes discussões científicas. Embarques científicos são ambientes muito ricos de aprendizagem. Estar em contato com profissionais de diversas áreas, e que, direta e indiretamente, se relacionam com meu tema de pesquisa, fez com que eu expandisse minhas referências sobre o assunto. Para um pesquisador, essa é a melhor coisa que pode acontecer. E, com a convivência, as discussões inicialmente profissionais, acabam abrindo brechas para o surgimento de grandes amizades ao longo dos dias. O fato é que, muitas vezes, a fragilidade pode bater: cansaço, rotina intensa de trabalho, sono desregulado, saudades de casa… Nesses momentos, as amizades que foram construídas ali foram essenciais para fazer a experiência mais leve e completa.


Ao final da expedição, tivemos a oportunidade de conhecer a Estação Antártica Comandante Ferraz. Descer para o continente (na verdade, ilha, pois a Estação fica na Ilha Rei George), depois de 20 dias embarcada, navegando pela Península Antártica, foi um presente de encerramento. Em terra, a paisagem muda completamente. Pudemos ver pinguins de perto, musgos de até 600 anos, a ossada de baleia montada por Jacques Cousteau, praia de cascalhos de origem vulcânica, e até pude experimentar o “sabor” de um gelo antártico. A nova Estação, reformada e inaugurada em 2020, conta com 14 laboratórios para atender diferentes especialidades e exigências científicas. É impactante a estrutura construída e pensada para apoiar o avanço do Brasil nas pesquisas Antárticas.


Foto 6. Luiza Soares em frente a Estação Antártica Comandante Ferraz localizada na Baía do Almirantado. (Foto de Luiza Soares)


Foto 7. Ossada de baleia montada por Jacques Cousteau localizada nas dependências da Estação Antártica Comandante Ferraz sobre um manto de musgos. (Foto de Luiza Soares)


Após a visita, ainda tivemos um longo percurso de volta e, retornar pra casa depois de uma viagem que teve início no Treinamento pré-Antártico, meses atrás, e fim na Estação de Apoio no Rio de Janeiro, foi um mix de sentimentos. Aquela vontade de querer voltar para rotina e aconchego da minha casa ao mesmo tempo que queria ficar presa naquela vivência. Durante e depois do embarque, talvez eu tenha ficado com mais dúvidas do que respostas, mas com o desejo de um dia, quem sabe, ter outra oportunidade de voltar para este continente ao mesmo tempo hostil e maravilhoso. Pisei em terra com o coração tranquilo de que o trabalho foi concluído com sucesso: foram mais de 80 amostras coletadas em diversas estações oceanográficas prontas para serem analisadas! O meu desenvolvimento pessoal e profissional é mais difícil de quantificar, mas de uma coisa tenho certeza: não voltei a mesma.



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