Por Alynne Almeida Affonso
Ilustração: Silvia Gonsalves
É muito comum encontrarmos a oceanografia dividida em quatro grandes áreas: Física, Química, Geológica e Biológica. Essa abordagem pode ser bastante pertinente quando consideramos metodologias práticas e eficientes para estudar ciências complexas, como a Oceanografia. Segmentar o saber facilita ainda a produção de conhecimento, a pesquisa e o ensino, já que é uma forma de classificar e organizar grandes volumes de informação.
No entanto, fica o questionamento: será que tudo o que se refere às Ciências do Mar se enquadra nessa divisão em quatro grandes áreas? Sendo a Oceanografia uma ciência bastante multi e interdisciplinar, é quase natural supor que muitos assuntos relacionados aos oceanos acabem ficando à margem dessa divisão clássica. É o caso da Oceanografia Humana. Não é muito comum pensarmos nas Ciências do Mar como uma ciência humana, mas os mares e oceanos têm, sim, uma componente significativa nas ciências sociais. O que faz bastante sentido se pararmos para pensar na zona costeira e na influência que o mar exerce e já exerceu na sociedade.
Nem sempre a pesquisa em Oceanografia Humana é classificada como Oceanografia propriamente dita, e isso se deve, possivelmente, à melhor adequação de muitos temas estudados na oceanografia como “ciências duras” (ou, em inglês, hard sciences) – ou seja, rígida em suas fundamentações teóricas e em sua capacidade preditiva. As ciências duras seguem à risca o que, em ciência, se conhece como Método Científico, que é a coleção e observação de dados quantificáveis, aplicação de modelos matemáticos e uso de experimentos controlados, produzindo resultados com grande grau de acurácia. Já as ciências humanas e sociais são classificadas como “ciências moles” (sei que o nome é esquisito, mas vem do inglês soft sciences), preocupadas em investigar o comportamento humano e da sociedade. Estes assuntos podem ser bastante subjetivos, baseados em interações complexas que não se encaixam na abordagem de estudo prevista pelo Método Científico, já que se torna muito difícil estabelecer um critério de análise tão sólido para temas tão abstratos.
As ciências sociais podem cruzar o caminho das ciências do mar de muitas formas. A pesquisa na interface entre oceanografia e ciências humanas está bastante focada na compreensão da dinâmica entre as comunidades costeiras e o meio ambiente, uso dos recursos costeiros, uso e ocupação do território costeiro, conflitos ambientais e valoração. Mas, será que alguém se preocupa em estudar o mar em sua componente histórica? Afinal, História é uma das bases das ciências humanas e sociais. O passado, afinal, é a chave para o presente.
E a resposta é: SIM! Existe uma ciência toda dedicada ao tema. A História Ambiental é uma disciplina relativamente recente, é verdade, que surgiu nos Estados Unidos durante a onda ambientalista dos anos 60 e 70, e é definida por OOSTHOEK (2005) como “o estudo da interação entre humanos e o meio ambiente no passado. A história ambiental estuda as relações entre humanos e ambiente ao redor, procurando compreender como a interação entre ambos funciona”. A História Ambiental esmiúça o papel da natureza na influência das atividades humanas e em como os humanos moldam o meio ambiente ao longo do tempo.
As Zonas Costeiras são suscetíveis a mudanças bruscas e rápidas na sua configuração, induzidas tanto por processos naturais como por pressão antrópica – inclusive, para muitas zonas costeiras ao redor do mundo, a componente humana é a principal forma de alteração do espaço costeiro. O conhecimento histórico, através de uma leitura das questões da natureza, permite verificar a percepção histórica das mudanças ambientais. É possível assimilar as relações entre espécie humana e fatores naturais e investigar as interações entre cultura, natureza e interações entre homem e zona costeira no passado e através do tempo humano. Entender o passado é essencial para modelar e prever o futuro, e aí reside a grande importância da história ambiental.
A interpretação histórica das questões ambientais permite a conexão entre geografia física, topografia, geomorfologia costeira a fatores climáticos, oceanográficos e biológicos, aliados a uma perspectiva política, econômica e sociológica. No entanto, é importante analisar as interpretações das ações humanas no mundo natural no passado às mudanças associadas a estes fenômenos com bastante cuidado, porque os problemas que ocorrem no presente podem influenciar a nossa percepção do passado e como interpretamos os acontecimentos pretéritos.
A História Ambiental, no entanto, é muito mais que apenas apontar as interações danosas entre sociedade e natureza. Ela trata de interpretações históricas de problemas ambientais, incorporando mudanças que se apoiam na pluraridade das dimensões naturais e culturais relativas às atividades humanas e às diversas formas de percepção do ambiente e sua relação com a vida em sociedade.
Uma forma muito eficiente e que tem sido aplicada com bastante frequência para o estudo da História Ambiental é o uso do Sistema de Informações Geográficas (SIG, ou GIS em inglês). O HGIS (ou Historical Geographical Information System do inglês, algo como Sistema de Informações Geográficas Histórico) é uma ferramenta eficiente porque o uso de mapas históricos georreferenciados (ou seja, associados à informações espaciais como coordenadas geográficas) e digitalizados é uma forma visual, qualitativa e quantitativa de observar mudanças ambientais ao longo do tempo, e amplamente utilizada pelos pesquisadores da História Ambiental (Figura 1). Através do HGIS é possível também armazenar, exibir e analisar dados do passado relativos ao meio ambiente e correlacionar os dados espaciais históricos com informações quantitativas como censos e pesquisas sociais realizadas por prefeituras, órgãos públicos e universidades (Figura 2). Essas informações permitem, além da reconstrução de ambientes pretéritos, a observação de mudanças dos parâmetros ao longo do tempo.
É o que autores como DONAHUE (2007), CUNFER (2006), TUCCI (2010) fizeram, para citar apenas alguns. DONAHUE e CUNFER usaram mapeamentos históricos e estatísticas de uso do solo para avaliar as condições ambientais e alterações de longo prazo na paisagem induzidas por atividades de agricultura no território norte-americano. Já TUCCI, através da análise de mapas históricos de Milão, acompanhou mudanças na paisagem urbana e nos parâmetros sócio-econômicos, representativos de períodos históricos específicos, e comparou com as características atuais a fim de detectar padrões de evolução da malha urbana ao longo do tempo. Alguns autores como DeBOER & CARR (1969), CHARDON (1982), CLUTTON (1982), LLOYD et al. (1987), HESSLER (2005), além da jovem pesquisadora que aqui vos escreve, escolhemos a zona costeira como alvo dos estudos em História Ambiental. Estes autores reconstruíram, através de mapas históricos e estatísticas, as zonas costeiras alvo de seus estudos e compararam com mapas e índices atuais, a fim de acompanhar a evolução da paisagem e do comportamento do homem em relação ao ambiente (Figura 3).
Existem muitos métodos para se efetuar as análises temporais dos ambientes pretéritos, que em geral, são bastante complexos. Dificilmente um autor repete a metodologia de outro passo a passo, já que as peculiaridades das áreas de estudo e objetivos da pesquisa fazem com que os pesquisadores tenham que adaptar as metodologias às suas realidades. Em minha pesquisa de mestrado, por exemplo, eu avaliei as mudanças na paisagem da Baixada Santista ao longo de 4 séculos. Desenvolvi minha própria metodologia de análise, uma vez que a maioria dos autores que eu pesquisei, por serem de fora do Brasil, não ofereciam soluções que eu pudesse aproveitar integralmente. Adaptei técnicas de muitos autores para, no fim, desenvolver algo que funcionasse para o litoral de São Paulo e para o que eu buscava compreender.
E esse é o tema do meu próximo artigo para o Bate Papo com Netuno! Vou explicar como se faz essa análise histórica usando mapas antigos, as curiosidades e peculiaridades da cartografia histórica, e mostrar o que eu encontrei para a região de Santos, litoral de São Paulo. Aguardem!
Referências:
CHARDON, R. 1982. A Best-fit Evaluation of DeBrahm's 1770 Chart of Biscayne Bay. The American Cartographer. 1982, Vol. 9, pp. 47-67.
CLUTTON, E. 1982. Some Seventeenth Century Images of Crete: A Comparative Analysis of the Manuscript Maps by Francesco Basilicata and the Printed Maps by Marco Boschini. Imago Mundi. 1982, Vol. 34, pp. 48-65.
CUNFER, G. 2006. On the Great Plains: Agriculture and Environment. Environmental History. 1, 2006, Vol. 11, pp. 142-144.
DeBOER, G. e CARR, A. P. 1969. Early Maps as Historical Evidence for Coastal Change. Geographical Journal. 1969, Vol. 135, pp. 17-39.
DONAHUE, B. 2007. The Great Meadow: Farmers and the Land Colonial Concord. Yale : Yale Publisher Press, 2007.
HESSLER, J. 2005. Warping Waldseemüller: A Cartometric Study of the Coast of South America as Portrayed on the 1507 World Map. MAGERT Ala Map and Geography Roundtable. [Online] 2005. http://purl.oclc.org/coordinates/a4.pdf accessed in 01/06/2016.
LLOYD, R. e GILMARTIN, P. 1987. The South Carolina Coastline on Historical Maps: A Cartometric Analysis. The Carographic Journal. 1, 1987, Vol. 24, pp. 19-26.
OOSTHOEK, K.J. 2005. What is Environmental History? ENVIRONMENTAL HISTORY RESOURCES. [Online] 03 de January de 2005. [Citado em: 17 de 05 de 2016.] https://www.eh-resources.org/what-is-environmental-history/.
RUMSEY, D., WILLIAMS, M. 2002. Historical Maps in GIS in Past Time, Past Place: GIS for History. Ed KNOWLES, A.K. ESRI Press, pp.2-18.
TUCCI, M., GIORDANO, A. e RONZA, R. W. 2010. Using Spatial Analysis and Geovisualization to Reveal Urban Changes: Milan, Italy, 1737-2005. Cartographica. 1, 2010, Vol. 45, pp. 47-63.
Sobre a autora :
Alynne Almeida Affonso, 32 anos, Oceanógrafa pelo IOUSP e mestra em Sistemas de Informação Geográficas e Sensoriamento Remoto pela University College Cork (Irlanda). Depois de muito estudar oceanografia geológica, sedimentação marinha, sistemas e processos costeiros, manejo costeiro e aprender a fazer todo tipo de mapas e interpretar imagens de satélite, vive numa busca eterna por uma carreira na interface entre ciências exatas, humanas e sustentabilidade.
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