Quem nunca ficou de cama por causa de uma "virose"? De modo geral, os vírus são sempre associados a situações ruins nas nossas vidas, a mal estar e doenças (perigosas ou não). Mas nos oceanos, os vírus tem um papel muito importante.
Em primeiro lugar, você precisa saber que os vírus podem infectar praticamente todas as formas de vida, incluindo bactérias, archaea e microeucariontes, os quais são a base das redes tróficas dos oceanos. E vocês sabiam que um determinado grupo de bactérias marinhas (SAR11) é considerado o grupo de organismos mais abundante do nosso planeta? As SAR11 conseguem habitar lugares onde a maioria dos outros organismos não consegue sobreviver. Essas bactérias marinhas tem uma distribuição tão fantástica que antes acreditava-se que elas eram invulneráveis. Mas há apenas dois anos, descobriu-se que um grupo de vírus marinhos (“pelagiphages”, ou pelagifagos, termo em português) conseguem infectar e matar milhões dessas bactérias SAR11 por segundo. Já já você vai descobrir porque isso é tão importante.
SAR11: As bactérias de maior sucesso no planeta são marinhas.
Estudos da década de 90 e anos 2000 já demonstravam que a infecção viral, ao provocar a morte do hospedeiro, libera material celular (ou seja, nutrientes e carbono) de volta na alça microbiana dos oceanos. Mas um momento, o que é alça microbiana?
Antes ainda de falarmos de alça microbiana, precisamos falar sobre a rede trófica, que representa as relações de alimentação entre os organismos. É através da rede trófica que a energia emitida pelo sol consegue chegar a todos os seres vivos, inclusive nós, simples humanos. A energia solar é absorvida e convertida em carbono pelos produtores primários (fitoplâncton), que são consumidos pelo zooplâncton, que é então consumido por peixes, que são consumidos por peixes maiores, aves e/ou baleias. Mas essa clássica descrição da rede trófica (fitoplâncton-zooplâncton-peixe) é apenas um componente de um ciclo mais complexo. E apesar de a alça microbiana ser muito menos conhecida, ela não é menos importante.
Voltamos então para o que é essa tal alça microbiana. É simplesmente o processo pelo qual a comunidade microbiana (especialmente bactérias) degrada matéria orgânica. Essa matéria orgânica pode ser derivada da excreção dos organismos, do sloppy feeding do zooplâncton (quando o zoo não consome sua comida por inteiro, liberando partes não consumidas deste alimento para o oceano ao seu redor), bem como pela quebra e dissolução de materiais de plantas, entre outros. Essa matéria orgânica não está inicialmente disponível para absorção direta pela maioria dos organismos. O grande papel das bactérias é reintroduzir esse carbono de volta no ciclo, ou seja, na rede trófica. E isso representa uma fonte adicional de energia muito importante no sistema. Saiba mais sobre estes processos acompanhando a legenda do esquema abaixo, publicado na revista Nature.
O termo alça microbiana foi criado por um cientista paquistanês muito famoso chamado Farooq Azam, e por seus colaboradores. Eu pude assistir uma palestra belíssima do Dr. Azam no congresso da ASLO (uma associação que reúne cientistas das áreas de limnologia e oceanografia) em 2013, em New Orleans. Ele tinha apenas um slide e estourou o tempo que tinha para falar, mas ninguém teve coragem de interromper, pois era como escutar um conto de fadas, onde os micróbios eram o personagem principal, contada pelo próprio escritor da fábula. Imperdível! Quer saber mais sobre o trabalho deste pesquisador, acesse sua página (http://azamlab.eng.ucsd.edu/publications).
Mas vamos voltar ao personagem principal desta história, os vírus! Como falei no início do post, os vírus tem um papel importante na alça microbiana. Experimentos em laboratório indicaram que essa liberação de material celular pelos vírus pode ter o efeito de estimular o crescimento da comunidade microbiana. E já existem evidências de que os vírus são responsáveis pelo turn over (ou seja, pela renovação) de 20-50% da comunidade bacteriana por dia. Se essas estimativas representam bem a realidade, então os vírus devem aumentar o fluxo de matéria orgânica (carbono) para o fundo dos oceanos, quando comparados com ecossistemas sem vírus. E isso é importante porque o clima do nosso planeta é regulado, em grande parte, pelo fluxo de carbono para o fundo dos oceanos, que é mediado por organismos vivos (a tão famosa bomba biológica, descrita na imagem acima). Ou seja, o fato de este ano estar quente pra chuchu na sua cidade, tem uma certa associação com o equilíbrio dos fluxos de carbono em diferentes partes dos oceanos no mundo.
Ainda sabemos pouco muito pouco sobre os vírus marinhos. Os vírus da foto ao lado foram isolados durante a expedição TARA Oceans. Eles são tão pequenos, que precisaríamos alinhar 250 deles para termos a espessura de um fio de cabelo. Os estudos mais recentes indicam que esses pelagifagos sejam quase tão abundantes quanto as bactérias SAR11, as "invulneráveis" descritas acima. Portanto, saber mais sobre os vírus marinhos nos ajudará a entender melhor sobre como o carbono é estocado e liberado nos oceanos. Apesar da minha gripe da semana passada não ter relação nenhuma com esses organismos fantásticos, eles tem tudo a ver com o equilíbrio do nosso planeta.
Um tipo de vírus marinho coletado durante a expedição Tara Oceans. Fonte
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Até a próxima!
Artigos consultados e notícias interessantes:
Shelford EJ, Middelboe MM, Møller EF, Suttle CAS. (2012). Virus-driven nitrogen cycling enhances phytoplankton growth. Aquat Microbial Ecol, 66: 41–46
Weitz J. S. et al., 2014. A multitrophic model to quantify the effects of marine viruses on microbial food webs and ecosystem processes. The ISME Journal, 1–13
Buchan, A.; LeCleir, G. R.; Gulvik, C. A.; Gonzalez, J. M. (2014). Master recyclers: features and functions of bacteria associated with phytoplankton blooms. Nature Reviews Microbiology, 12, 686 - 698
http://uanews.org/story/ua-scientists-help-discover-most-abundant-ocean-virus
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