Reciclagem no Brasil: a gestão de resíduos e o papel dos nossos heróis invisíveis
- batepapocomnetuno
- 2 de out.
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Por Nicole Soares e Julia Felitte

Ilustração por Joana Dias Ho.
O que é a Política Nacional de Resíduos Sólidos?
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi criada em 2010 (Lei nº 12.305), mas só foi regulamentada 12 anos depois, em 2022. Ela trouxe uma nova perspectiva para a gestão de resíduos no Brasil. Seus princípios falam em consumo sustentável, proteção à saúde pública e responsabilidade compartilhada entre empresas, governo e consumidores.
Ao responsabilizar os fabricantes, a PNRS introduz a logística reversa, quando a empresa recebe as embalagens pós consumo para reaproveitar e destinar os materiais. Já a responsabilidade dos consumidores está diretamente relacionada com o consumo consciente, a separação adequada de resíduos e a reciclagem, que somente pode ser eficiente no território nacional se o setor público promover coleta seletiva, tratamento, informações e disposição final adequada aos resíduos.
Justamente nesse ponto está nosso calcanhar de aquiles. A existência da PNRS por si só não garante… quase nada!
Então, o que falta?
A Lei mencionada definiu prazos para a desativação dos lixões no país, de acordo com a realidade de cada município. Esse encerramento é muito importante, uma vez que esses espaços podem causar diversos problemas à saúde pública, como a proliferação de vetores de doenças, contaminação dos lençóis freáticos e riscos altíssimos de ferimentos aos catadores. Mesmo com todas essas problemáticas, milhares de municípios ainda convivem diariamente com lixões a céu aberto. De acordo com um relatório da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente, em 2022 foram descartados em média 33 milhões de toneladas de resíduos em pelo menos 3 mil lixões a céu aberto no Brasil (o equivalente a encher 233 Maracanãs!).
A dificuldade na desativação dessas estruturas em nosso país é agravada pelas baixas taxas de reciclagem, de 3% a 4%, muito abaixo da média mundial, que é de cerca de 20%. Essa porcentagem é alarmante levando em consideração que o nosso consumo e geração de resíduos só vem aumentando ao longo dos últimos anos.
Por que nem tudo é reciclado, mesmo sendo reciclável?
Outros fatores, como a desvalorização de determinados materiais e a falta de compradores interessados em reciclá-los, também impactam negativamente a realidade local. Diversas embalagens que encontramos facilmente nas prateleiras do mercado apresentam baixo valor de mercado devido ao alto custo de processamento e dificuldade de reaproveitamento em escala industrial. Embalagens como pacotes de salgadinhos, por exemplo, misturam plástico e alumínio, combinação que dificulta a separação e encarece o processo, fazendo com que, na prática, quase sempre acabem no lixo comum.
O isopor é outro caso preocupante. Embora seja tecnicamente reciclável, é volumoso e muito leve, o que encarece o transporte e exige bastante espaço nas cooperativas. Por isso, muitas vezes as indústrias não se interessam em comprá-lo. Sem equipamentos adequados para reciclar resíduos que exigem um processo mais complexo, toneladas desse material seguem para os aterros sanitários em vez de ganhar um novo uso. Um grande motivo para a falta de interesse na reciclagem por algumas empresas são os altos custos operacionais, sem incentivos fiscais adequados. Para efeito de comparação, de acordo com o Ministério da Fazenda, o agronegócio recebeu 158 bilhões de reais em isenções fiscais em 2024.
Assim, a produção em massa de embalagens não reaproveitáveis e o conjunto de falta de políticas públicas eficazes, educação, incentivos, fiscalização e estruturação adequada para a reciclagem contribuem para que a maior parte dos resíduos sólidos acabe em aterros sanitários, ou até em lixões clandestinos.
Heróis ambientais
Sem dúvida, os profissionais que mais impactam o país quando falamos sobre o assunto são os catadores de resíduos recicláveis. No Brasil, de acordo com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), são cerca de 800 mil trabalhadores em atividade. No mundo, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho (OIT) são mais de 15 milhões. Responsáveis por quase toda a reciclagem do nosso país, aproximadamente 90% de todo o material reciclado passa por suas mãos. Eles coletam, separam e classificam cada tipo de resíduo coletado, como papelão, papéis brancos, jornais, garrafas PET, plásticos rígidos, latas de alumínio, sucatas de ferro e aço e vidros, destinando-os corretamente para as empresas que irão reaproveitá-los.
Em determinadas regiões, algumas cooperativas de coleta seletiva, que coletam os materiais recicláveis previamente separados, como a Coopercaps (em São Paulo) e a Centcoop (no Distrito Federal), têm feito bons avanços na união de esforços com grandes empresas para promover a estratégia chamada de logística reversa. Além das cooperativas estaduais existe também a Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT), fundada em 2000. A Associação, que tem como objetivo defender os interesses dos trabalhadores da catação no Brasil, realiza atividades em 269 cidades ao longo de todos os estados brasileiros. Além disso, ela pode oferecer apoio técnico e financeiro aos catadores, atualmente integrando mais de 80 mil trabalhadores.
Sem o trabalho desses profissionais, quase sempre invisíveis para a sociedade, a reciclagem no Brasil simplesmente não aconteceria. Eles são, de fato, os verdadeiros heróis ambientais. Porém, apesar de sua relevância, os catadores enfrentam diversos tipos de dificuldades e preconceitos, como a desvalorização social, a marginalização e condições precárias de trabalho. De acordo com dados do IPEA (2013) cerca de 66,1% dos catadores se autodeclaram negros ou pardos, adicionando discriminação racial a mais uma das inúmeras batalhas que enfrentam diariamente.
Para melhorar as condições de vida e trabalho dos catadores, é imprescindível valorizar sua profissão. Isso passa pela regulamentação da atividade e pela garantia de direitos trabalhistas básicos. Recentemente, por exemplo, foi proposta a criação de um piso salarial nacional de dois salários mínimos. Mas apenas essa medida não resolve. É fundamental investir também em infraestrutura e dignidade no trabalho. Um exemplo prático é oferecer melhores condições de transporte para os materiais coletados, reduzindo o uso da força braçal e prevenindo lesões. Além disso, os catadores precisam estar presentes nas decisões que definem o futuro da reciclagem no Brasil, para que suas vozes sejam ouvidas e suas necessidades consideradas. Só assim será possível fortalecer o setor e garantir a inclusão real desses trabalhadores na sociedade.
Interior de uma cooperativa no município de São Paulo. Foto: Nicole R. Soares
Qual o nosso papel?
Para contribuir com o futuro que queremos, nós consumidores, temos a função de separar e higienizar corretamente os recicláveis, destinar nossos resíduos no local e horários adequados, e buscar entender o que acontece quando a embalagem sai da nossa casa. Além disso, pequenos gestos de valorização aos profissionais que sustentam a reciclagem no Brasil, como oferecer uma refeição ou água, também podem fazer a diferença.
É importante ressaltar que não devemos apenas pensar na reciclagem dos resíduos sólidos, principalmente provenientes das embalagens plásticas, mas também tentar mudar nossa cultura de consumo. É necessário reduzir o consumo desenfreado, optar sempre por produtos com maior reciclabilidade, e incentivar as pessoas ao redor que também repensem seus hábitos. Perguntas como “Eu realmente preciso de tudo isso? Como eu posso mudar meus hábitos de consumo? Para onde o “lixo” vai quando sai de casa?” são um bom jeito de começar. Sabemos que os itens “descartáveis”, especialmente os plásticos, são muito acessíveis e baratos para a indústria, mas, sempre que possível, é interessante buscar alternativas ao uso desses materiais, que não são reciclados, e considerar também dar novos usos ao produto antes de descartá-lo. E, somente quando não houver alternativas de uso, descartar o material de maneira correta.
Além disso, o decreto regulamentador da PNRS aborda também o importante tema de educação ambiental na gestão de resíduos sólidos, trazendo a obrigação do governo em promover ações educativas para todos os envolvidos no ciclo dos resíduos, desde sua fabricação até o descarte. Porém, podemos também buscar por essas iniciativas em nossos municípios, ou até mesmo iniciar nossas próprias!
Na cidade de São Paulo o Movimento Recicla Sampa, iniciado em fevereiro de 2019, resulta de uma parceria entre Prefeitura, algumas empresas de coleta (Loga e Ecourbis) e a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb). A iniciativa possui um site onde você pode aprender a reciclar de um jeito simples, ver curiosidades sobre reciclagem e até mesmo descobrir quando a coleta seletiva passa na rua mais próxima à sua casa! Além disso, o movimento tem um instagram bem ativo com conteúdos de educação ambiental, informações sobre reciclagem, coleta seletiva e ações realizadas na cidade. Para conhecer melhor o Recicla Sampa, acesse o site: www.reciclasampa.com.br.

Exemplos de páginas disponíveis no site reciclasampa.com.br
Referências bibliográficas
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PLANALTO. Lei 12.305/2010 - Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 29 out. 2024.
Sobre as autoras:

Nicole é graduanda em Oceanografia pelo IO-USP e bolsista no projeto “Descomplicando Netuno: ampliando a cultura oceânica nas escolas”, coordenado pela Profª Dra. Cláudia Namiki, que foca na produção de conteúdos acessíveis sobre oceanografia para jovens. Idealizadora do projeto de extensão “Oceano para Todos” (@oceano.para.todos), voltado à promoção da cultura oceânica em comunidades próximas à USP. Atua em áreas voltadas à educação ambiental, produção de materiais didáticos, e a conexão entre ciência e sociedade. Já participou do Projeto Ecosteiros (IB-USP) e do Centro de Biologia Marinha da USP (CEBIMar), desenvolvendo atividades com públicos variados.

Júlia é estudante de bacharelado em Oceanografia na Universidade de São Paulo, amante da educação ambiental. Já trabalhou com divulgação científica e hoje está inserida em projetos relacionados à cultura oceânica e estudo de meio. Além disso, é bolsista no Projeto Ecosteiros, do Instituto de Biociências da USP.
Júlia e Nicole elaboraram este texto como projeto da disciplina “Divulgação Científica e cultura Oceânica”, ministrada pela Prof.ᵃ Dr.ᵃ Cláudia Namiki, do curso de Bacharelado em Oceanografia do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.








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