Por Yonara Garcia
Ilustração: Joana Ho
No oceano, existe uma interessante associação entre duas espécies: a microalga planctônica Chaetoceros coarctatus e o ciliado Vorticella oceanica. Esta microalga pertence ao grupo das diatomáceas - um dos mais abundantes e ecologicamente importantes - responsáveis por aproximadamente 40% da produtividade primária marinha. Encontrado em ambientes marinhos tropicais e subtropicais, os Chaetoceros coarctatus formam cadeias, geralmente longas, com cerca de 25 a 40 células, além de possuírem setas intercalares e terminais curvadas em direção à extremidade posterior (figura A). Esta espécie de diatomácea planctônica é comumente encontrada em associação com o peritríqueo ciliado Vorticella oceanica, um organismo epibionte que se adere sobre a microalga por meio de um pedúnculo (figura B). São suspensívoros, ingerindo bactérias, fitoplâncton e detritos orgânicos, por meio de seus cílios orais.
Chaetoceros coarctatus em associação com Vorticella oceanica.
Foto de Yonara Garcia, licença CC BY 4.0.
Em microrganismos planctônicos, a motilidade (ou seja, a capacidade do organismo se mover) está ligada a diversos fenômenos importantes, como por exemplo, a migração vertical. Para o fitoplâncton, a motilidade permite que as células se desloquem para regiões mais profundas durante a noite, onde os nutrientes limitantes são abundantes e há menor risco de predação e, durante o dia, permaneçam em águas superficiais com disponibilidade de luz.
As diatomáceas não possuem estruturas que permitem seu deslocamento na coluna de água, como cílios e flagelos, fazendo com que este grupo desenvolva diversas estratégias. No caso da associação Chaetoceros-Vorticella, a motilidade ocorre, basicamente, em função da produção da corrente alimentar pelos ciliados aderidos à cadeia de microalgas, ou seja, enquanto os ciliados se alimentam ocorre o deslocamento de toda associação na coluna de água. Para os ciliados de vida livre, a motilidade é considerada aleatória, para aumentar a probabilidade de detecção de presas. Ao detectarem uma fonte alimentar por um estímulo mecânico ou químico, por exemplo, os ciliados têm a capacidade de modificar seu movimento, alterando a velocidade de natação e a direção do movimento. Assim, a locomoção em ciliados ocorre em resposta a uma combinação de estímulos abióticos e bióticos (como intensidade de luz e disponibilidade de alimento) que proporciona maior acesso a regiões com condições mais adequadas de sobrevivência.
Desta forma, de acordo com estudos realizados, pode-se sugerir que a associação Chaetoceros-Vorticella permite a esta diatomácea cêntrica uma motilidade ativa na coluna de água através de sua “carona” no peritríquio ciliado, fazendo com que se beneficiem de áreas com maior disponibilidade de nutrientes inorgânicos, importantes para a produção fotossintética, além de um maior deslocamento para todos os organismos envolvidos nesta simbiose.
Mas aqui você já deve estar se perguntando o porquê do título do post, qual a relação disso tudo com uma mãe e sua filha?! E aqui começamos essa viagem…
Em 2019, eu engravidei. Antes de saber que estava grávida achei que estava com algum déficit de vitamina, pois me sentia tão cansada, com tanto sono e sem energia para as atividades que eu realizava normalmente. Quando descobri o motivo de todas as mudanças, comecei a associar aquele bebê, que se desenvolvia no meu útero, com um parasito. Não tinha nada de positivo para mim naquela simbiose que se iniciava, pois sugava minhas energias. Mas ao refletir, imagino que as associações que ocorram na natureza talvez comecem como um incômodo. Uma hora você está ali tentando sobreviver e do nada surge um outro ser grudado em você. Até começar a dar certo, a fazer sentido, passa por um período de adaptação. E assim foi comigo e minha filha.
No início, uma parasitinha e, com o passar do tempo, nossa simbiose foi se modificando. Minha gravidez não foi muito fácil, não pelo bebê que foi bem tranquilo de modo geral, mas por todas mudanças que ocorreram na minha vida, todo o pânico de virar mãe no momento que eu não me sentia pronta profissionalmente, me sentia uma hipócrita por defender mulheres e maternidade na ciência e ao sentir todo peso disso nas costas, não consegui ir contra o sistema, me julguei, senti vergonha naquele primeiro momento, como se falar que eu estava grávida fosse um fracasso. Isso tudo contribuiu para eu não ter uma gravidez romantizada, que sempre vemos nas redes sociais. Até que chegou o dia em que a Mia nasceu. Lembro até hoje de, ao pegá-la, sentir aquela pele lisinha e quentinha, com aqueles olhinhos de jabuticaba me encarando… acho que foi ali que começou a acontecer algo diferente. E, devagar, eu fui aprendendo a amar aquele ser.
Eu tive todos os dias mais lindos de Ubatuba para registrar esse meu momento, mas foi em um dia nublado, já no nono mês de gravidez, que uma querida amiga, com toda delicadeza e sensibilidade, tirou fotos lindas minha. Para mim, foi o dia perfeito. Foto de Elisa Menck.
Acho que aqui nossa associação foi estabelecida. Claro que haviam dias que me sugava, como noites sem dormir, amamentação dolorosa, mas já era diferente. Assim como ocorre na associação Chaetoceros-Vorticella, quando há alguma perturbação, apesar de estabelecida a simbiose, a Vorticella abandona a cadeia de Chaetoceros e parte para nadar livremente. Ainda não se sabe se elas são capazes de se assentar em um novo substrato, mas é um recurso de sobrevivência do ciliado. Nesse caso eu não fugi, mas recorri à minha rede de apoio, que foi fundamental no meu processo.
Todo esse início foi muito difícil. Parar a minha vida completamente para me dedicar a um bebê, entrar em uma pandemia, estar de volta à casa dos pais esperando toda essa onda de incertezas passar, enfrentar problemas familiares, perder pessoas e animais queridos, enfrentar questões internas, enfrentar questões que eu jamais imaginava passar… a sensação era de que 2020 nunca fosse terminar. Até que o ano de 2022 foi se desenrolando e eu fui conseguindo abrir algumas portas, com muito mais cautela, talvez um pouco de medo, mas abri. Decidi continuar a carreira acadêmica e fazer doutorado. Procurei a dedo um(a) orientador(a) que pudesse ler logo nas primeiras linhas do e-mail “Oi, eu sou mãe” e mesmo assim abrisse a porta pra mim em um sistema que ainda não está preparado para receber essa classe de pesquisadoras. Achei essa pessoa, apresentei o projeto para uma banca, passei por todo o processo que ocupou muito meu tempo naquela semana e me deixou com um caminhão de culpa por não ter tido tempo para minha filha naqueles dias. Mas era preciso. O processo acabou, e eu passei. Após enviar o último documento para a secretaria da pós-graduação, eu sentei e chorei… sequei as lágrimas e fui brincar com a Mia no jardim. Nossa associação já não é mais pesada como no início. Ela agora me dá forças, me dá leveza (não estou dizendo que seja fácil!), já não tenho mais vergonha ou medo de falar que sou mãe pra quem quer que seja.
A associação Chaetoceros-Vorticella foi o objeto de estudo do meu mestrado. Eu queria entender como essa motilidade que a associação trazia para os organismos envolvidos poderia beneficiar as espécies, bem como avaliar a relevância ecológica desse comportamento. E entre as observações que tive a partir dos experimentos realizados em laboratório e de outros estudos publicados, uma é bem interessante. O comportamento natatório desta associação pode ter consequências para a agregação dos organismos no ambiente marinho, por intermédio da formação de camadas finas. Este fenômeno é comum em águas costeiras estratificadas.
Em resposta a processos biológicos ou físicos, a camada é formada por aglomeração do fitoplâncton em manchas discretas na coluna de água com espessura variando de alguns centímetros a poucos metros, extensão horizontal de vários quilômetros e pode persistir por dias. Estas camadas possuem uma grande importância ecológica, já que podem representar um “hotspot” de interações biológicas, estando frequentemente associadas com alta abundância de bactérias, zooplâncton e peixes. Contudo, algumas camadas são formadas por espécies de fitoplâncton tóxicas, refletindo em menores concentrações de zooplâncton quando relacionadas às camadas adjacentes. Neste caso, a camada pode fornecer uma vantagem seletiva para estas espécies de algas, fazendo com que a camada seja vista como um refúgio contra a predação. Assim, em termos de submesoescala (escala dos movimentos que ocorrem na camada de mistura do oceano, que varia em escalas espaço-temporais da ordem de 1-10 km em períodos de poucos dias), este estudo sugeriu que o deslocamento realizado pela associação Chaetoceros-Vorticella pode contribuir para a formação de camadas finas, levando à formação de hotspots de atividade biogeoquímica e de interações tróficas. No entanto, esta hipótese necessita de validação experimental e, idealmente, de observações de campo.
Além disso, em regiões oligotróficas, epipelágicas e estratificadas, a associação com Vorticella pode ser um dos fatores que garante o sucesso desta diatomácea sob condições ambientais que seriam de outra forma adversas para espécies do microfitoplâncton. A motilidade possibilita à diatomácea atingir regiões com maior disponibilidade de nutrientes e, em contrapartida, os ciliados teriam uma maior probabilidade de detectar partículas alimentares em maior concentração e ainda obter proteção contra a predação.
Neste ano de 2023, eu e minha filha, que agora está com 3 anos, estamos nos mudando para Santos, São Paulo, para eu iniciar efetivamente meu doutorado na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). Estou com frio na barriga de me mudar para outro estado, para uma cidade que não conheço, sem minha rede de apoio diária. Mas, agora, nossa associação já está estabelecida. E se encontrarmos um oceano oligotrófico pela frente, iremos desenvolver estratégias para criar nosso próprio hotspot. A jornada não vai ser fácil, mas estou ansiosa para nadarmos juntas.
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...desejo que seja hipertrofico, este oceano novo...