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Conservação da biodiversidade: sobre mulheres, desafios e representatividade

Atualizado: 15 de set. de 2021

Por Clarissa Ribeiro Teixeira, Julia Cavalli Pierry e Mariane Barbosa Santos Novelli

Ilustração por Verônica Lorraine.


“Estou de pé

sobre o sacrifício

de milhões de mulheres antes de mim

pensando

no que eu posso fazer

para deixar esta montanha ainda mais alta

para que as mulheres que venham depois de mim

possam ver mais longe.”

(Legado – Rupi Kaur)


O Brasil é o país com o maior número de pessoas conservacionistas assassinadas por ano. É também o quinto país em que mais matam mulheres. É preciso começar assim, de forma dura e indigesta – tal qual essa realidade – para assimilarmos desde o começo que todas as mulheres brasileiras conservacionistas são, também, sobreviventes.


Mesmo sendo historicamente colocadas à margem da sociedade, o Brasil é um dos países com a maior porcentagem de artigos científicos produzidos por mulheres, seja como autoras principais ou coautoras. O pioneirismo feminino na ciência brasileira é marcado por grandes nomes, como o da bióloga e sufragista Bertha Lutz (1874-1976). Especialista em anfíbios anuros, Lutz catalogou mais de 4.000 espécies nacionais e foi também a segunda mulher brasileira a ocupar um cargo de servidora pública, ao tornar-se secretária do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Seu pioneirismo ultrapassou o âmbito científico e chegou na atuação política ao assumir a liderança na luta pelo direito das mulheres ao voto e pela igualdade de gêneros, e ao fundar a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher e a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Bertha Lutz durante Conferência de São Francisco realizada em 1945, onde lutou para incluir o termo “mulheres” no documento que fundou a ONU (Fonte: Arquivo Nacional com licença CC BY 3.0).


Outra grande referência é Maria Tereza Jorge Pádua. Agrônoma e conservacionista, participou da criação do IBAMA e foi responsável por gerar mais de oito milhões de hectares de áreas protegidas no Brasil, englobando parte das Unidades de Conservação da Amazônia, o Parque Nacional do Pantanal, a Chapada Diamantina e o Arquipélago de Fernando de Noronha. Em 2016, foi a segunda mulher na história a receber a Medalha John C. Philips – a mais alta condecoração do Congresso Mundial de Conservação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Além da inestimável contribuição para a conservação da biodiversidade brasileira, o trabalho destas e de outras pioneiras abriu caminho para a atuação de muitas outras que vieram posteriormente. Inspiradas por elas, convidamos quatro mulheres que atuam ou atuaram na conservação para compartilhar experiências vividas ao longo de suas trajetórias.


A bióloga Daniela Fettuccia atuou em projetos de educação ambiental, e desenvolveu suas pesquisas de pós-graduação no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Durante oito anos, Daniela estudou o tucuxi (Sotalia fluviatilis) - uma das espécies de boto que ocorre na região. Em um de seus estudos, ela avaliou a variação morfológica entre esqueletos de tucuxis e botos-cinza (Sotalia guianensis), que até pouco tempo eram consideradas uma única espécie, contribuindo assim com informações relevantes para a ecologia e conservação destes animais.


Bióloga e ativista, Luciana Leite esteve presente em um dos maiores desastres ambientais da atualidade: auxiliou a combater o fogo e resgatar animais queimados ou debilitados durante as queimadas no Pantanal mato-grossense. Devido ao seu engajamento e à receptividade da comunidade local, Luciana atualmente lidera o coletivo Chalana Esperança, uma iniciativa criada juntamente com Cecília Licarião, Daniella França e Lua Benício e que busca desenvolver projetos de educação e sensibilização quanto aos problemas que ameaçam a biodiversidade pantaneira.




Luciana Leite - Ilhas de alimentação durante

queimadas no Pantanal (Fonte: cedido pela autora

com licença CCBY-SA 4.0)


Ainda adolescente, Maria Emilia Morete (Mia), já se considerava uma ativista ambiental contra a caça das baleias. Sempre teve consigo o desejo de ajudar na conservação desses animais e, ao se tornar bióloga, trilhou um caminho em direção a esse objetivo. Especialista em estudos de ponto fixo utilizando a ferramenta teodolito, Mia e “Teo” - como apelidou carinhosamente seu equipamento - atuam juntos há quase 25 anos em estudos de baleias e golfinhos. Em 2016, Mia fundou o Instituto Verde Azul - VIVA que atua na educação, pesquisa e ativismo e tem como principal objetivo sensibilizar as pessoas para a conservação dos mamíferos aquáticos.


Bióloga e professora do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Michele de Sá Dechoum trabalha desde o seu mestrado com ecologia de espécies exóticas invasoras, buscando obter informações que possibilitem a gestão e o manejo dessas espécies. Também coordena o Laboratório de Ecologia de Invasões Biológicas - LEIMAC, e é gestora da base de dados nacional sobre espécies exóticas invasoras do Instituto Hórus de Desenvolvimento e Conservação Ambiental. Seu estudo teórico e prático colabora de forma primordial para a conservação de ecossistemas nativos brasileiros em diferentes frentes de atuação.


Painel das mulheres conservacionistas entrevistadas: Mia Morete, Daniela Fettuccia, Luciana Leite e Michele de Sá Dechoum (Fonte: cedido pela autora com licença CCBY-SA 4.0).


Quando questionadas sobre representatividade feminina ao longo de suas carreiras, as entrevistadas reforçam sua importância: “não apenas na área ambiental, mas também na literatura, música, cinema, teatro, esportes – precisamos ter referências de mulheres!” – reflete Michele. Luciana lembra que, quando criança, ouvia sobre mulheres que mudaram a história da conservação ambiental no mundo, mas que essas pareciam muito distantes da sua realidade — brasileira e nordestina. Além de exemplos femininos na ciência e ativismo, Mia evidencia o quanto mulheres do seu cotidiano foram e seguem sendo fontes de inspiração, destacando Berna Barbosa, guarda parque há mais de 30 anos no Parque Nacional Marinho de Abrolhos. Já Daniela destaca a honra de ter sido orientada por uma das maiores referências na pesquisa de mamíferos aquáticos, a Dra. Vera Maria Ferreira da Silva, e complementa: “considerando todos os lugares que já visitei durante a pós-graduação, tenho notado que o número de mulheres assumindo posição de destaque tem crescido notavelmente, felizmente”.


Essa atuação, entretanto, segue acompanhada pelas dificuldades inerentes às questões de gênero: “na minha percepção, mulheres têm que ser muito mais produtivas, fazer ‘muito mais por merecer’ do que homens, para que consigam atingir seus objetivos. Acho também que somos menos ouvidas e reconhecidas em nossos ambientes de trabalho, que são majoritariamente masculinos”, reforça Michele. Pensando em soluções coletivas que poderíamos adotar enquanto sociedade para mudar esse cenário, Michele continua: “precisamos seguir lutando pelos nossos direitos, sermos engajadas, falarmos sobre desigualdades entre gêneros, sempre que possível. Precisamos que isso faça parte da nossa práxis e do nosso discurso”, e Luciana complementa: “além de conversarmos abertamente sobre o tema, precisamos exigir políticas institucionais que fomentem ambientes acadêmicos e científicos inclusivos e amigáveis para todes”, com um acordo geral de que um dos caminhos necessários para alcançarmos tais mudanças é a educação.


Evidentemente, o papel das mulheres na conservação da biodiversidade no Brasil vai muito além do meio acadêmico e científico: professoras, educadoras ambientais, ativistas, mulheres de comunidades tradicionais, ocupantes de cargos administrativos, gestoras de unidades de conservação e muitas outras vêm exercendo funções de destaque. Em Cananéia-SP, por exemplo, um grupo de artesãs caiçaras conhecidas como Mulheres da Enseada da Baleia atuam na produção de peças artísticas sustentáveis por meio do reaproveitamento de redes de pesca descartadas. Ao reutilizar material pesqueiro que estaria poluindo o ecossistema marinho, essa iniciativa contribui de forma direta na conservação local, gera empregos e renda para as mulheres da região, além de sensibilizar a comunidade local a repensar seu consumo. Outro exemplo são as Guerreiras da Floresta - um grupo de mulheres criado para auxiliar na defesa do território do povo Guajajara no Maranhão, por meio do combate aos madeireiros e garimpos ilegais e de debates sobre a importância da natureza para os povos indígenas em escolas locais.


Ao olharmos para o protagonismo feminino na conservação brasileira, podemos perceber que apesar dessa diversidade de atuações, não observamos uma pluralidade de mulheres e, consequentemente, de suas distintas realidades em todos esses cargos. Muitos dos espaços conquistados - principalmente no meio acadêmico e científico - são ocupados majoritariamente por mulheres cisgênero e brancas. Reflexo de uma cultura escravocrata, ainda hoje os obstáculos são maiores e as oportunidades mais escassas para aquelas que sofrem outros tipos de opressão na sociedade em que vivemos. Assim, é necessário que reconheçamos nossos privilégios e que, a partir deles, busquemos formas de ampliar o acesso à formação acadêmica para todas que desejarem e, principalmente, que valorizemos a atuação de todas em qualquer frente de conservação, respeitando o conhecimento e a cultura dos povos nativos e a importância da luta de todas nós. A conservação ambiental e a justiça social podem e devem caminhar juntas.


“É importante lembrar que, em um país racista e classista como o Brasil, sou uma mulher cercada de privilégios (...) a minha luta feminista não se baseia apenas na minha vivência pessoal enquanto mulher e cientista ou ambientalista, mas sim nas experiências e obstáculos enfrentados por outras mulheres, em toda a sua diversidade.”

(Luciana Leite)


Esse texto nasceu com o intuito de homenagear as mulheres que atuam na conservação da biodiversidade brasileira. Ao longo do processo, percebemos que essas trajetórias não foram construídas apenas com conquistas, mas também com obstáculos que variam de acordo com as diferentes realidades. Enquanto mulheres, biólogas e atuantes em um projeto de conservação socioambiental que se reconhecem em posição de privilégio, compartilhamos a gratidão pelo caminho trilhado pelas que vieram antes, o reconhecimento das que lutam todos os dias para permanecer atuando e o desejo de contribuir com aquelas que buscam trilhar o mesmo caminho. Que esse texto possa inspirar e tornar a montanha um pouco mais alta para todas nós.

Foto das autoras - Mariane, Julia e Clarissa - ao final de um dia de coleta de dados em campo (Fonte: cedido pela autora com licença CCBY-SA 4.0).

 

Sobre as autoras


Clarissa Ribeiro Teixeira

Sou Bacharel e Licenciada em Ciências Biológicas (UFPR), Mestre em Zoologia (UFPR) e Doutora em Ecologia (UFSC). Atualmente sou pesquisadora colaboradora do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e do Instituto de Pesquisas Cananéia (IPeC), onde atuo como técnica de Ecologia Comportamental no Projeto Boto-Cinza (Petrobrás Socioambiental). Sempre fui fascinada pela etologia e desde a minha graduação atuei em projetos de pesquisas com mamíferos marinhos nesta linha de pesquisa. Durante o meu doutorado, resolvi mudar meu foco e comecei a trabalhar com biomarcadores (isótopos estáveis) para avaliar o uso de habitat e ecologia trófica da megafauna marinha. Desde então, esse tema se tornou minha paixão! Se quiser saber um pouco mais sobre mim me segue lá no Twitter (@ClaTeixeira), entra no meu site (sites.google.com/view/clarissarteixeira) ou me manda um e-mail (clarissa.rteixeira@gmail.com)


Julia Cavalli Pierry

Sou Bacharel em Ciências Biológicas e Mestre em Ecologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atuo como técnica de campo e pesquisadora responsável da linha de Padrões Populacionais no Projeto Boto-Cinza do IPeC. Pesquiso os padrões populacionais e comportamentais de cetáceos há quase dez anos e sou completamente apaixonada por esses animais e seu habitat desde criança. Além de procurar borrifos no mar, amo pedalar, escrever, dançar e fotografar. Se quiser conferir algumas fotografias e saber mais sobre meu trabalho me segue no Instagram (@ju.pierry) ou envia um e-mail (juliapierry@yahoo.com.br).


Mariane Barbosa Santos Novelli

Bacharel em Ciências Biológicas (Univasf), Mestranda em Zoologia (UFPR) e Designer Gráfico nas horas vagas. Combinação que me permite atuar, hoje, no setor de Comunicação do Projeto Boto-Cinza do IPeC e com algumas das coisas que mais gosto: conservação da biodiversidade, educação ambiental, divulgação científica e, é claro, o mar. Alguns dos meus projetos estão no meu portfólio (https://www.behance.net/marianebsnovelli) e também podemos trocar uma ideia pelo meu Instagram (@marianebsnovelli) ou e-mail (marianebsnovelli@gmail.com).

 

Referências:

Amarante, Suely. Kalil, Irene. 2018. Pesquisadoras falam sobre mulheres e pesquisa científica. Portal FioCruz - Pesquisadoras falam sobre mulheres e pesquisa científica


Camargo, Suzana. 2016. Maria Tereza Pádua é primeira brasileira e segunda mulher a receber a maisreceber mais alta condecoração ambientalista do mundo. Conexão Planeta - https://conexaoplaneta.com.br/blog/maria-tereza-padua-e-primeira-brasileira-e-segunda-mulher-receber-mais-alta-condecoracao-ambientalista-do-mundo/


Fowks, Jacqueline. 2018. Brasil, o país mais letal para defensores da terra e do meio ambiente. El País - Brasil, o país mais letal para defensores da terra e do meio ambiente


Gustafson, Jessica. 2019. Brasil caminha para liderar ranking mundial da violência contra mulher. Portal Catarinas - Brasil caminha para liderar ranking mundial da violência contra mulher


Marasciulo, Marília. 2019. Bertha Lutz, a bióloga pioneira no movimento de igualdade de gênero. Revista Galileu - Bertha Lutz, a bióloga pioneira no movimento de igualdade de gênero - Revista Galileu | Sociedade (globo.com)


Melo, Karina. 2020. Mulheres indígenas e crise climática: vulnerabilidades e contribuições fundamentais. Todos os olhos na Amazônia - Mulheres Indígenas e crises climática: Vulnerabilidades e Contribuições Fundamentais | (todososolhosnaamazonia.org)


Tokarnia, Mariana. 2019. Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil. Agência Brasil - Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil



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