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Defesa de tese virtual: relato da minha experiência

Atualizado: 5 de jun. de 2020

Por Viviane Becker Narvaes



No último dia 20 de março, de 2020, defendi minha tese de doutorado intitulada “O Teatro do Sentenciado de Abdias Nascimento: classe e raça na modernização do teatro brasileiro” junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). A defesa ocorreu, portanto, no cenário do desencadeamento da crise global gerada pela disseminação do novo Coronavírus. Não parece haver um problema na ordem dessa sentença? Reflito que ela seria melhor formulada da seguinte maneira de acordo com as condições de vida que temos hoje: - a crise global que vivemos gerou a disseminação do novo coronavírus. Ao fazer essa inversão, adianto que é neste sentido que faço meu relato da experiência de defesa. De modo geral, trata-se o momento atual como suspensão da normalidade. Por um lado é isso mesmo, excepcionalidade, mas por outro a normalidade que vivíamos precisa ser criticada, pois era aceitável apenas como um véu obnubilando a visão de quem ocupa posições menos precarizadas no mundo do trabalho na nossa sociedade.


Diante da magnitude da pandemia, às vésperas da defesa da tese, me vi mergulhada em reflexões dessa natureza.


No Rio de Janeiro, onde resido, bem como em São Paulo, onde se realizaria a defesa, as políticas de enfrentamento da doença começaram a estabelecer o isolamento social, a redução da mobilidade entre as duas cidades, a quarentena para quem teve contato com doentes ou realizou viagens internacionais, dentre outras medidas. A incerteza sobre a realização da defesa na data prevista começou a se instaurar.


No dia 13 de março recebi o primeiro comunicado da pró-reitoria de pesquisa informando sobre novas possibilidades de realização das defesas. Sob a insígnia “A USP não pode parar”, cada dia recebia um comunicado novo, sempre sem mencionar possibilidade de adiamento. Até o dia 18, nem eu, nem minha orientadora sabíamos se iria ocorrer de fato, embora em termos técnicos e burocráticos tudo estivesse certo.


Busco ao relatar minha experiência refletir simultaneamente sobre aspectos da minha subjetividade nesse contexto e sobre as ideias gerais, mais objetivas, que consubstanciou minha vivência.


A concentração, preparação e ansiedade que vivi nos dias que antecederam a defesa, sentimentos e ações esperadas que perpassam qualquer pessoa que esteja no fechamento de um ciclo de pós-graduação, se intensificaram, principalmente por conta das indefinições e das contradições entre as medidas tomadas pela universidade e aquelas dos setores públicos estaduais tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo.


A manutenção da data da defesa implicou em risco à vida da minha orientadora e dos trabalhadores da USP que precisaram estar na universidade para que tudo ocorresse. Precisei também dar conta das novas rotinas impostas pelo isolamento em relação à minha família. A isto, se somou a necessidade de discutir e resolver questões relacionadas ao trabalho na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde sou professora. Todas essas implicações foram muito angustiantes. Não sei o que ocorria com cada membro da banca, em suas casas, famílias e trabalho nesse período, mas posso imaginar que se deram dificuldades da mesma natureza. A ansiedade que foi em mim gerada por tantas notícias de internet e demandas de mensagens virtuais, suponho que também ocorreu com cada um que participou. Comigo essas dinâmicas geraram, inclusive, muita dificuldade de concentração na realização de tarefas simples.


Na data prevista, a defesa ocorreu e fui aprovada. O ato de defesa se deu por meio do aplicativo Skype, com cada membro da banca, eu e minha orientadora, em locais diferentes. Tudo mediado por um aplicativo eletrônico. Eu utilizei uma versão gratuita, e creio que os membros da banca também, talvez apenas a versão da USP seja paga. A velocidade da minha internet residencial é a mais alta possível e meus equipamentos são relativamente novos, o que sei que não é a realidade de grande parte de meus colegas de pós-graduação.

Viviane durante a defesa.

A defesa começou com um pequeno atraso devido aos ajustes técnicos para fazer funcionar a tecnologia e contatar cada uma das pessoas. Cerca de três minutos após o início, todos os vídeos desapareceram da minha tela, eu não via mais ninguém. Só podia ouvir a argüição. Nesse momento eu informei o que ocorria, mas nada havia a ser feito, pois o problema era na minha interface. Todos estavam assistindo o vídeo que preparei para apresentação que foi compartilhado pela minha orientadora.


Não ver as pessoas falando durante a arguição transformou a defesa em uma das coisas mais difíceis que já fiz, pois sem as expressões do rosto, sem os olhares e sem o gestual, uma parte da comunicação foi totalmente prejudicada, e mesmo a variação no volume da voz exigiu de mim uma concentração enorme.


O rito de defesa foi preservado, foi o mesmo em aparência e em função pública, mas em essência foi completamente desumanizado. Conquanto a qualidade das intervenções e da defesa em si foram mantidas, uma fração importante do processo não estava presente, pois o espaço de empatia e afeto, que o encontro face a face permite, foi sequestrado.


A ideia de que não se pode parar, de que a USP e a pós-graduação não podem parar, não é nova: na última década, pelo menos, esse discurso foi apresentado contra as greves dos trabalhadores da educação. O aspecto nocivo da subserviência aos sistemas de ranqueamento das universidades já vinha mostrando seus efeitos nas perdas de direitos dos trabalhadores e agora, durante a pandemia, mostra que não basta o adoecimento dos docentes e a inviabilidade de se aposentar com tempo para viver com qualidade de vida. É uma necropolítica mesmo, na qual a vida é menos importante do que a produtividade.


Talvez se possa, diante de tanta contradição, enfrentar daqui pra frente os discursos anti-greve que pretendiam denunciar que este instrumento estava caduco para os trabalhadores da educação sob o argumento que não somos fábrica e portanto não parávamos a produção stricto sensu. Pois, neste momento eles caem por terra, quando diante do quadro de crise a universidade afirma que não pode parar.


Os precedentes para quando voltarmos às situações presenciais foram abertos, e é possível que este modelo seja adotado sem grandes críticas, pois o contingenciamento de verbas já estava em curso antes da pandemia e, se for imposta a garantia de parcos recursos para pesquisa e sua divulgação, em troca de se abrir mão da presença física nas bancas, não será surpreendente que tal procedimento ganhe aceitação. Tenho visto uma acolhida entusiasmada de defesas à distância por parte de muitos colegas da pós-graduação (professores e estudantes), que se sentem às vezes mais confortáveis em realizar essas atividades de dentro das suas casas, tal a precarização que está instalada. Não é de se estranhar esse primeiro encantamento, pois a sobrecarga de trabalho em que muitos se encontram dá a aparência que esse mecanismo economiza tempo.


Muitas análises sobre o isolamento social que estamos vivendo indicam que a vida a nossa volta vai ficar diferente quando tudo isto passar. Desejo profundamente que isto ocorra, que exista mais solidariedade, que se estabeleça outra relação com o meio ambiente, que o trabalho seja menos explorado, que se possa ter mais lazer e mais saúde. No entanto, se durante esse período admite-se como normalidade, no meio universitário, práticas que excluem do processo pedagógico e intelectual a qualidade que o encontro, a coletividade e o afeto promovem, creio que o caminho inverso está sendo traçado.


 

Sobre a autora:


Possui graduação em Arte Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2004), graduação em Artes cênicas - Licenciatura pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2008) ,mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2007) e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo - USP (2020). É professora adjunta IV da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Teatro, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, espetáculo teatral, ensino de teatro, encarceramento e performance. Desde 2009, coordena em parceria com outros docentes o Programa de Extensão Cultura na Prisão; Atualmente é chefe do Departamento de Ensino de Teatro.




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