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Gorda no campo

Por Anônima

Ilustração de Caia Colla


Sempre fui grande. A mais alta da turma, a de ombros mais largos, a de pernas mais grossas. Num mundo onde o padrão de beleza é ser magra (mas também não magra demais!), ser gorda é algo pelo qual eu me via pedindo desculpas. Desculpas pelo espaço que ocupo. Fui me conformando que não dava para usar minissaia como minhas amigas, a sempre sentar num sofá abraçando uma almofada para esconder as dobrinhas e que, mesmo não me achando feia, eu não era alguém desejável de estar junto ou de ser igual.


Acho que meu conformismo (bem diferente de aceitação, viu?) em partes me protegeu de mim mesma. Eu estava conformada de que nunca seria pequena, mignon, então melhor focar em outras coisas. E quando digo “focar em outras coisas”, quero dizer achar outras coisas nas quais eu fosse julgada só positivamente, compensando minha “imperfeição. Afinal, como distrair o mundo do fato óbvio e visível de que eu não caibo dentro das expectativas de como uma mulher deve ser fisicamente? Se eu for a mais estudiosa, a mais eficiente, a mais amigável, dirão que, pelo menos, tenho essas qualidades. Claro, essa não era uma escolha consciente, mas, sim, uma forma de buscar aprovação externa. A frase “gordo fazendo gordisse” me assombra!


E esse pavor não é só meu. Antes deste texto eu não havia parado para pensar muito sobre a relação entre meu perfeccionismo e meu tamanho. Porém, ao procurar sobre o assunto, descobri que existem diversos estudos sobre o tema! Considerando insatisfação com o corpo, distúrbios alimentares, autoestima sexual... e um detalhe importante: a maioria voltado à percepção de mulheres, vítimas mais comuns desse tipo de pensamento.


Então minha adolescência e início da minha vida adulta são indissociáveis desse meu receio de ser julgada – independente se eu estivesse em uma fase mais gorda ou mais magra. Mas, como disse, eu estava conformada e disposta a dar o meu melhor em outras áreas.


Com 17 anos, entrei na faculdade para estudar oceanografia, animadíssima! Engraçado que hoje vejo pessoas dessa idade e nem acredito que eu era tão nova quando comecei. E talvez por isso, ainda carregava muitas inseguranças e limitações da adolescência. O mundo que eu conhecia era aquele das mesmas pessoas com quem passei minha vida escolar inteira. Eu tomava muito espaço desse mundo pequeno e talvez agora em um mundo maior eu não me sentisse espremida.


E, aos poucos, fui realmente me acomodando. Continuava conformada (e não aceitante) com o fato/percepção de ser grande, mas acho que fui entendendo que não precisava me desculpar tanto por causa disso.


Mas, vez ou outra, eu me via na situação de achar que tinha que me provar.


Um momento crítico para mim foi meu início em trabalhos de campo. Estar na natureza, ao ar livre, vendo processos e fenômenos é uma das partes que mais gosto do trabalho. Tem muito perrengue, claro, e também muito aprendizado. Porém, é uma parte física do trabalho. Daí já bate aquele velho receio de ser julgada... Se eu fosse a mais devagar na trilha, se eu tivesse dificuldade subindo ou descendo de um barco, até se eu estivesse mais suada: na minha cabeça, a razão clara era porque sou gorda e estou atrapalhando, não porque sou um ser humano e é isso que acontece com quem tem um corpo da nossa espécie.


Perdi algumas oportunidades de dar um mergulho gostoso depois do trabalho por vergonha de ficar de biquíni na frente dos colegas. Mas foi durante o expediente que ouvi um comentário que me marcou.


Estava em um grupo grande de alunos, recém-chegados no nosso destino de campo: uma praia rural para um programa de monitoramento de 3 dias. Ficamos hospedados numa pousada e almoçávamos juntos, ansiosos para essa nossa primeira expedição. Sentei-me junto com colegas e um da mesa simplesmente solta o comentário: “Achei que você estaria de preto. Emagrece, hein! Hahaha”.


Eu, a maior entre minhas amigas, fiquei paralisada. Eu estava usando uma roupa que eu julgava ser adequada para um trabalho de campo na praia, não estávamos falando sobre escolhas de vestuário ou questões de peso, nada ali indicava que eu estava buscando uma opinião sobre meu visual. Mesmo assim, uma pessoa que eu mal conhecia sentiu que seria interessante direcionar todos os olhares da mesa para mim e praticamente apontar que eu tinha gordurinhas visíveis que poderiam ser mais bem disfarçadas. Fiquei só pensando em como eu poderia diminuir e sumir de vista (se eu tivesse esse superpoder, com certeza já teria usado em outros momentos!).


Para algumas pessoas pode ser só uma questão de mandar o infeliz para o inferno e seguir a vida, mas não para mim. Era aquela vozinha que morava só na minha cabeça até então sendo falada por outra pessoa, confirmando o que eu sempre soube: eu sou gorda e estou ocupando um espaço que não deveria.


Talvez se outra pessoa do grupo tivesse dado essa resposta, não doeria tanto. Mas o clima foi de sorrisos amarelos. Minha impressão foi que as pessoas até se mostraram incomodadas pela minha reação de não rir, não pelo comentário em si. Mas o que poderiam falar? Numa sociedade onde comentar que alguém emagreceu é considerado um elogio incrível, eu estava recebendo uma dica “aceitável”. Além disso, o corpo feminino ainda é tratado como algo que está ali para receber opiniões alheias. E, como mulher, a gente tem martelado na nossa cabeça como devemos nos comportar e mandar alguém calar a boca com certeza não está no nosso script de boa moça.


Ao mesmo tempo que esse comentário me marcou como algo triste, também me motivou a repensar essa minha insegurança. Quem era essa pessoa julgando meu corpo? Alguém preocupado com minha saúde? Que queria me deixar mais feliz? Que agregava alguma coisa com sua fala? Não.


Então por que me preocupar com isso?!


Passei o restante da expedição observando e registrando fauna, coletando amostras nas maiores dunas que já tinha visto, andando quilômetros no sol, sentindo o vento quente soprar e carregando minha mochila cheia de equipamentos para todo lado. Tudo só possível por conta do meu corpitcho incompreendido. Meu corpo é mais do que minhas dobrinhas. São minhas pernas que me carregam, meus braços que seguram firme, minhas costas moídas no fim de um dia cansativo. Hoje, vejo que é hora de ser mais gentil com ele, né?


Você agora pode estar se perguntando: por que trazer esse assunto para um canal de divulgação científica? Como mulher, estamos constantemente nos vendo em situações nas quais precisamos nos provar e isso atravessa para dentro do nosso mundo como cientistas. Tanto a mulher cientista que se arruma com maquiagem quanto aquela que prefere não usar nada são julgadas como “arrumada demais” ou “desleixada”. A gorda que vai ao campo pode ser julgada como menos capaz.


Foi inclusive aqui no Bate-Papo com Netuno onde vi pela primeira vez um relato como o meu. Na live sobre assédio entre mulheres embarcadas, havia o depoimento de uma das entrevistadas que, por conta de seu peso, ouvia de outros membros do embarque que não daria conta de descer e trabalhar no mangue, que ela iria “atolar”. Alguns meses depois, em um congresso, ouvi de uma participante outro relato que me marcou. A pesquisadora disse que ao voltar de uma campanha intensa de trabalhos em campo, sua orientadora a criticou e disse: “Esse trabalho de campo todo nem serviu para você perder um peso, né?”.


Eu e essas mulheres fomos profissionais em nosso trabalho, mas mesmo assim fomos julgadas pelo nosso tamanho. Ouvimos comentários não solicitados, maldosos e que em nada colaboram para uma ciência melhor.


Para mudar esse cenário, percebi que primeiro preciso reconhecer que isso é uma forma de assédio, algo inaceitável num ambiente de trabalho. Agora, busco exemplos, apoio e inspiração que me ajudem na desconstrução dos nossos padrões de beleza!


Um destes é o movimento chamado body positive, que estimula a positividade sobre nosso corpo. Tenho lido mais a respeito ultimamente, buscando fazer as pazes com meu tamanho. Uma crítica comum ao movimento é que ele permitiria a aceitação de hábitos não saudáveis, promovendo obesidade e sobrepeso. Porém não se trata disso. Aliás, ter uma postura body positive me estimula a ser mais saudável, a ouvir melhor meu corpo em vez de calar tudo que ele tem a dizer.


Claro que não é todo dia que acordo com a mesma resolução de amor-próprio. E tudo bem! Mas meu objetivo maior é nunca mais deixar outra pessoa me fazer sentir inferior pela visão que ela tem sobre o meu corpo.


Escrever esse texto tem sido um exercício de expor muito da minha vulnerabilidade e, por isso, optei por me manter anônima. Mas sinto que esse é um assunto que precisa ser levantado, mesmo que eu não consiga ainda manter uma conversa sobre isso abertamente. Agradeço demais o espaço seguro que tenho aqui!


A forma, tamanho, cor ou qualquer outra característica do seu corpo não determina sua capacidade. Ser gorda não me faz ser pior pesquisadora em campo, no laboratório, na sala de aula... E vou usar a cor de roupa que eu quiser fazendo tudo isso!



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