Por Juliana Leonel
Se o termômetro só foi inventado no início do século XVIII, como é possível haver estudos que falam da temperatura superficial da água do mar há milhares de anos atrás?
Para uma oceanógrafa, que trabalha de geoquímica marinha, o sedimento é muito mais que simples partículas de matéria orgânica e inorgânica. Quando olho para o sedimento marinho, vejo uma infinidade de informações preservadas que são a chave (ou uma das chaves) para estudar a história passada não só dos oceanos, mas do nosso planeta. Por exemplo, a partir das informações armazenadas nos sedimentos marinhos sabemos que durante o Cretáceo (aproximadamente 90 milhões de anos atrás) a temperatura dos oceanos (e da atmosfera) era muito mais quente do que a atual. Além disso, quantidade de oxigênio dissolvido era baixíssima e uma grande quantidade de matéria orgânica produzida foi preservada nos sedimentos e, posteriormente, deu origem a importantes bacias petrolíferas. Também foi através de estudos do sedimento marinho que sabemos que a Terra passou por ciclos de glaciação e interglaciação nos últimos 2 milhões de anos. Sabemos quando ocorreu o fechamento do Istmo do Panamá e quando houve a formação das calotas polares na Antártica.
"Mas como isso é possível?", você deve estar se perguntando.
Esses estudos são possíveis graças ao uso de diferentes ferramentas, que vão desde o estudo da composição da matéria orgânica preservada nos sedimentos marinhos até estudos da ocorrência/composição de microfósseis (como foraminíferos, diatomáceas etc) preservados no sedimento.
Com relação à matéria orgânica sedimentar, vamos antes entender de onde ela vem, para onde ela vai e como ela sobrevive a essa "viagem"...
A matéria orgânica (MO) presente nos sedimentos marinhos é oriunda principalmente de duas fontes: a) plantas terrestres (principalmente plantas superiores); e b) organismos fitoplanctônicos. No primeiro caso trata-se da matéria orgânica alóctone (produzida em um ambiente externo) e o segundo caso da MO autóctone (produzida no próprio ambiente). A MO vai além de restos de folhas e algas, ela é constituída por diversos grupos de compostos, tais como proteínas, carboidratos, lipídios, lignina, entre outros. Não só a quantidade de cada um desses componentes, mas também as moléculas que os constituem, vão depender de fatores como: fonte da MO (plantas superiores de metabolismo C3, plantas superiores de metabolismo C4, fitoplâncton, bactérias etc) e das características do ambiente durante a sua formação (temperatura, salinidade, disponibilidade de oxigênio, etc.).
Diferenças na composição da matéria orgânica terrestre e marinha.
Uma vez na coluna de água, a matéria orgânica particulada irá sedimentar e durante esse processo poderá ser remineralizada, ou seja, será degradada até retornar aos seus constituintes inorgânicos (tais como carbono, nitrogênio e fósforo inorgânicos). No entanto, uma pequena porção vai chegar até o sedimento intacta ou sofrendo apenas pequenas alterações. É importante ressaltar que mesmo no sedimento a matéria orgânica pode ser remineralizada. Nas condições ambientais atuais estima-se que, em média, do total de MO produzida na zona fótica apenas 1 % chegará ao sedimento marinho e apenas 0,1% será preservada.
Ainda que representando uma parcela pequena de toda as partículas orgânicas do ambiente marinho, a matéria orgânica sedimentar guarda na sua composição informações importantes sobre a sua fonte e condições em que foi produzida e preservada. Para recuperar essas informações, pesquisadores coletam amostras de sedimentos superficiais ou testemunhos sedimentares que são fatiados (geralmente a cada 1 ou 2 cm) e datados (usando radioisótopos¹). Uma vez que se sabe a idade de cada uma dessas camadas, a matéria orgânica é analisada e seus componentes identificados e quantificados.
Fotos de testemunhos por Juliana Leonel com Licença CC BY-SA 4.0.
Ok. Mas, como uso a MO sedimentar para saber a temperatura superficial da água do mar de milhares de anos atrás?
Entre os diversos componentes da MO sedimentar, há um grupo de compostos chamado alquenonas, que são cetonas de cadeia longa (de 37 a 39 carbonos) contendo de 2 a 4 insaturações (= ligações duplas). Produzidas por duas espécies de cocolitoforídeos, Emiliana huxleyi e Gephyrocapsa oceanica, sendo que a primeira tem ampla distribuição nos oceanos. Esses compostos são lipídios que resistem aos processos de degradação ao longo da sua sedimentação na coluna de água e fazem parte da MO sedimentar.
Emiliana huxleyi.
Fonte: (2011) PLoS Biology Issue Image | Vol. 9(6) June 2011. PLoS Biol 9(6): ev09.i06 com licença CC
As alquenonas de 37 carbonos e com 2 e 3 insaturações são utilizadas como biomarcadores para avaliar a temperatura superficial da água do mar (TSM), pois são produzidas em diferentes proporções em função da temperatura da água em que o organismo se encontra. Para manter a estabilidade das membranas celulares, conforme a temperatura aumenta, esses organismos produzem mais alquenonas com um número maior de insaturações. Sabendo disso, pesquisadores criaram um índice, o Uk'37 que é uma relação entre as alquenonas de 2 e 3 insaturações e o qual permite calcular a temperatura da água onde as alquenonas foram formadas.
Além das alquenonas, existem outras ferramentas geoquímicas que podem ser usadas para estudar a temperatura dos oceanos em tempos passados, tais como os Glicerol dialquil glicerol tetraether (produzidos por arqueobactérias e carinhosamente chamados pela sigla GDGTs) e relação entre os isótopos estáveis de oxigênio (δ18O) ou da relação entre magnésio e cálcio (Mg/Ca) nas carapaças calcárias de foraminíferos.
A matéria orgânica é uma ferramenta incrível e nos ajuda a entender muito sobre o passado e presente da Terra, por isso falarei mais sobre o tópico em um próximo post!
Vocabulário:
¹Radioisótopos: isótopos instáveis que, em busca de estabilidade, decaem produzindo outros eles e liberando energia na forma de radiação.
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