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Transitando entre saberes: o que aprendi sobre ciência em Moçambique

Atualizado: 5 de jun. de 2020

Por Caio Gabrig Turbay


Fazia pouco mais de doze horas que eu havia chegado em Moçambique e já estava chacoalhando dentro de uma caminhonete, em uma estrada esburacada, a caminho da minha base de trabalho. O local era a cidade de Xai-Xai, 220 km ao norte da Capital, Maputo. As últimas 24 horas haviam sido exaustivas, insones, com uma conexão longa no aeroporto de Joanesburgo e uma rodada de bares na noite de Maputo, com o meu novo chefe e colegas da empresa.


Na cabeça muita incerteza e medo. Na época, nos meus 26 anos, ainda era um geólogo recém formado que pouco conhecia o trabalho a ser feito. Deixava para trás família e amigos. Uma empresa multinacional, sediada no Canadá, havia me contratado para participar de um time responsável por procurar depósitos minerais em areias litorâneas da costa africana do índico, da Tanzânia à África do Sul e Madagascar.


A- Localização da região estudada no contexto continental africano; B- Mapa de Moçambique e suas províncias (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0)


No carro, Mark, meu colega australiano, me alertava sobre os riscos inerentes ao trabalho. Os “riscos”, para o ele, passavam por questões claramente de cunho racial e de forte preconceito da parte dele, até cuidados justificáveis com a fauna silvestre e as famigeradas minas terrestres.


Eu havia chegado no país em 2002, sete anos após o cessar fogo de uma guerra civil sangrenta, que colocou no campo de batalha pessoas que antes conviviam e se toleravam e que lutaram lado a lado em uma guerra anterior, contra o colonizador português. As impressões de um país arrasado por duas guerras consecutivas ainda eram nítidas: casas abandonadas, estradas sem manutenção, ruínas, uma fauna que beirou o extermínio, campos minados e um povo que iniciava uma linda caminhada, aprendendo a ter autonomia, após séculos de subserviência a Portugal.


Meu papel era o de liderar equipes em campo, prospectando as chamadas “areias pesadas”, portadoras de minerais de alta densidade como a ilmenita, rica em titânio, além de outros com valor econômico secundário. Essas areias, em geral, são o produto do retrabalhamento constante das correntes marinhas, ondas e ventos, ao longo de milhares de anos, concentrando camadas ricas nestes minerais. Para o rastreamento destas camadas, o conhecimento da dinâmica costeira e do trabalho geológico dos ventos é fundamental.


Os minerais presentes nas areias têm origem nas rochas continentais, que após serem desgastadas por intemperismo e erosão, liberam o seu conteúdo para os rios e posteriormente são levados ao mar. Uma vez no litoral, inicia-se o trabalho das correntes de deriva litorânea, das ondas e do vento, distribuindo, mas também concentrando os minerais de acordo com as suas densidades. Em Moçambique, grandes rios como o Limpopo e o Zambeze encarregaram-se de trazer a areia e a lama juntamente com os minerais pesados até o mar. As correntes marinhas no litoral sul do Oceano Índico, com movimentação geral de norte para sul, completam o trabalho espalhando os sedimentos pela costa


Concentração de minerais pesados na praia a partir da remoção de partículas sedimentares mais leves e retenção das mais pesadas (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0).


Durante as primeiras semanas no país, o treinamento e o contato diário com os moçambicanos me fizeram lentamente quebrar as barreiras frágeis da visão racista e neocolonial dos expatriados da empresa. Fechando o primeiro mês, tombei vitimado pela malária em um dos acampamentos. Após a cura, na visita a um hospital na cidade de Xai-Xai, a curiosidade em receber notícias do Brasil me trouxe o término de um namoro via e-mail, que não poderia ter sido mais formal. Aos poucos, os meses se passaram e os amigos deixaram de enviar notícias. Era minha carta de alforria compulsória do Brasil. A partir disso, comecei uma profunda imersão na cultura e vida de Moçambique, à medida que o meu conhecimento sobre a geologia da África austral e sobre o litoral moçambicano e sul-africano aumentavam.


Passamos a utilizar métodos mais elaborados de prospecção. Das imagens geofísicas descobri que os alvos de prospecção estavam nas cristas e na base de antigas dunas, já fixadas por vegetação e em antigas praias, abandonadas pelo recuo do mar. Junto ao trabalho constante das correntes, dia a dia, ano a ano, somavam-se as variações da linha de costa e do nível do mar, resultados das glaciações que o planeta sofreu durante os últimos 12 milhões de anos, intensificadas no período geológico chamado Quaternário (últimos dois milhões de anos).


Dinâmica de crescimento, avanço das dunas e concentração de minerais pesados: A- A ação direcional do vento inicia o acúmulo de areia em camadas, estruturando a duna; B- A chegada de mais areia faz com que a duna cresça verticalmente e continue sua movimentação. Minerais com alta densidade (minerais pesados) são removidos com maior dificuldade e tendem a se concentrar em pontos específicos; C- Com as chuvas, as águas se infiltram e o lençol freático pode eventualmente subir. As areias saturadas de água tornam-se imóveis e propiciam o estabelecimento de vegetação que se aproveita desta água. A duna estabiliza-se (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0)


Dinâmica de variação do nível do mar a partir de ciclos de glaciação e interglaciação: 1- Nível do mar estável durante um determinado tempo (nível do mar 1); 2- Estabelecimento de um período glacial com rebaixamento do nível no mar (nível do mar 2) e avanço da costa em direção à antiga plataforma marinha. O rebaixamento do nível do mar deve-se a retenção de grande parte da água do planeta na forma sólida (gelo e neve) nos pólos e nas altas montanhas; 3- Período de aquecimento atmosférico e término da glaciação levando a um aumento do nível do mar e recuo da costa em direção ao continente; 4- Segundo evento de glaciação, com novo avanço do litoral e retrabalhamento das areias litorâneas anteriormente depositadas (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0).




As areias depositadas no litoral e abandonadas pelo rebaixamento do nível do mar são continuamente retrabalhadas pelos ventos no litoral moçambicano e sul-africano, criando dunas enormes conhecidas como draas (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0).


Nesta dinâmica, uma vasta planície sedimentar foi formada e tínhamos, nos anos que se seguiram, grandes áreas para cobrir. Visitávamos lugares remotos, com paisagens em regeneração, que aos poucos traziam de volta a fauna típica das savanas africanas.

Planície sedimentar formada durante as variações do nível do mar nos últimos doze milhões de anos (Mioceno-Holoceno) na região de Inhambane, Moçambique. As lagunas em cores cinza, encontram-se preenchidas por sedimentos e se desenvolveram durante recuos rápidos do mar, seguidos de avanços das antigas linhas de costa. Em cada evento de recuo, associado a um ciclo glacial, um cordão litorâneo era formado e a laguna instalava-se atrás do cordão (Fonte: Caio Gabrig Turbay. Adaptada de imagem LANDSAT TM obtida em USGS/NASA Landsat - https://landsat.visibleearth.nasa.gov)



Exemplo de laguna preenchida por sedimentos por trás de um cordão litorâneo retrabalhado pelo vento (dunas). Observe que as dunas encontram-se fixadas por vegetação (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0)


Após os dois primeiros anos, já não aguentava a relação manipuladora, abusiva e mentirosa da empresa com os seus funcionários moçambicanos e pessoas nativas. Após séculos de atividade extrativista de estrangeiros na África, parecia que nada havia mudado. Não queria mais fazer parte disso. Aguentei por mais um ano. Em meados de 2005, numa tarde chuvosa, entrei numa pequena aeronave bimotor que que me levaria de Inhambane, minha residência, a Maputo e depois à África do Sul. O avião estava decolando e ainda pude ver Micá, uma amiga portuguesa, colocando suas mãos no rosto para chorar. O coração apertou. Novamente uma mudança, novamente amigos ficando para trás. Do alto, pela última vez, olhei para a Baía de Inhambane, a Ponta do Tofo, os naufrágios expostos na maré baixa e as praias que se perdiam no horizonte.


Os anos se passaram, Moçambique ficou como uma boa lembrança no tempo. Para minha surpresa, em 2014 surge uma nova oportunidade. Um projeto através do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e sua agência de cooperação, a ABC, novamente me levariam a Moçambique. Minha impressão é a de que havia alguma dívida a ser sanada.


Voltei feliz! Revi amigos. Ao contrário do passado, uma nova empreitada de cunho socioambiental, juntamente com agrônomos, arquitetos e técnicos ambientais. Mais dois anos se passaram em algumas viagens ao país. Dois anos convivendo com um povo alegre e acolhedor. Dois anos de desapego e doação, aprendendo a metodologia do diagnóstico participativo, onde as relações são horizontalizadas e o diagnóstico e solução das questões, são construídos coletivamente . Dois anos em que vislumbrei de uma forma muito mais bonita a ciência que havia aprendido nos bancos da universidade e na prática de campo.


Meu foco agora era a erosão de solos que atingia o município de Xai-Xai, suas ruas sem pavimento feitas sobre areias de dunas antigas e as pequenas propriedades agrárias às margens do Rio Limpopo. Achei que fosse ensinar. Aprendi. Nas oficinas que realizamos, descobri que tanto os moradores quanto os técnicos locais conheciam muito bem os problemas e conseguiam vislumbrar formas de resolvê-los. Meu papel, quase como expectador, foi apenas o de organizar as informações e incitar a criatividade das pessoas para as descobertas.


Planície de inundação do Rio Limpopo com suas margens férteis e pequenas glebas agrárias (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0).


A raiz do problema estava na vegetação que estava sendo extinta para a produção de lenha, que abastecia os fogões da maioria das casas. Sem vegetação, as areias eólicas, aquelas areias que são transportadas e depositadas pelo vento, ficavam expostas, eram erodidas e jogadas nas partes baixas, na planície do Limpopo. Todos entendiam o problema, mas como no Brasil, havia interesses de terceiros para que as coisas não se resolvessem, falta de recursos e um engendramento político que burocratiza e engessa.


Bloco diagrama exemplificando o problema erosivo no município de Xai-Xai (Fonte: Caio Gabrig Turbay com licença CC BY-SA 4.0).


Hoje pensando em tudo que aconteceu, papeando com o meu amigo Nivaldo, nos damos contas das “dunas” que temos que enfrentar nas nossas vidas. Mas o maior aprendizado que tirei de Moçambique, foi a certeza de que a ciência deve ser feita com desapego, longe da vaidade, do ego, e de que ela pode e deve ser usada para o bem da coletividade, humana e não humana. Isso mudou a minha vida.


 

Sobre o autor:


Caio Gabrig Turbay é pai de Nina e Caique e marido de Erica Munaro, yogi e engenheira florestal. É espiritualista, amante da natureza e das atividades ao ar livre, além de construtor de barcos, velejador e viajante. Graduado em geologia pela UFRRJ, com mestrado em bacias sedimentares e doutorado em geotectônica pela UERJ, trabalha atualmente na UFSB, Porto Seguro, Bahia, onde leciona para os cursos de Oceanologia e Bacharelado em Ciências. Desenvolve atividades de pesquisa com sedimentologia de ambientes marinhos e glaciais, petrologia de rochas vulcânicas e sedimentares, petrologia de meteoritos e geoquímica de rochas e sedimentos. É neófito e entusiasta da divulgação e jornalismo científico, do software livre e da filosofia hacker.


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