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O museu como um espaço político

  • batepapocomnetuno
  • há 8 horas
  • 5 min de leitura

Talvez o título desse texto tenha te causado um estranhamento, especialmente se você está pensando em museus de ciências e história natural. Um museu sobre a história da ditadura no Brasil, de guerras, que foca em questões geopolíticas? Vá lá! Talvez você esteja pensando “como visitar um museu e olhar algo como um fóssil de dinossauro poderia ser um ato político?” 


Pois bem, pode adicionar visita a museus junto à lista de tudo mais que é político: comer, se vestir, ler, educar... tudo é um ato político. O que quero dizer com isso é que nossas escolhas, gestos e silêncios afetam, direta ou indiretamente, a vida em sociedade. Política não é só o que acontece no governo, é também como usamos recursos, quem incluímos ou excluímos, como consumimos, como falamos, que causas apoiamos ou ignoramos. Mesmo o que parece “neutro” ou “individual” tem implicações sociais, culturais e econômicas, logo, é político.


Nos últimos anos, têm sido noticiadas ocasiões em que a sociedade se opõe à presença de estátuas, monumentos ou homenagens de figuras cuja bagagem histórica controversa está carregada de racismo, misoginia, ódio, regimes autoritários e outros crimes. No Brasil, temos diversos exemplos de escolas que foram renomeadas, com novos nomes escolhidos em consulta à comunidade escolar.


Daí surge uma pergunta importante: O que acontece (ou deveria acontecer) com estátuas, monumentos e outras peças desse tipo quando estão dentro de um museu? 


Recentemente fui impactada por essa pergunta quando visitei o Hunterian Museum, na Universidade de Glasgow na Escócia. Pessoalmente, nunca trabalhei com museus ou coleções científicas, e meu ponto de vista sobre o assunto é de apreciadora desses espaços. Quase não me importa a temática de um museu: se calhou que eu consigo visitar, tô dentro! Leio praticamente todas as plaquinhas informativas, olho item por item das exibições, adoro assinar aqueles livros de visitantes e deixar um recadinho... Carrego comigo minha lente inevitável de cientista e me pego fazendo conexões com meu trabalho e minha vida. Chorei com as notícias do incêndio no Museu Nacional em 2018.


O Hunterian Museum foi uma dessas visitas que eu não planejei. Eu tinha um compromisso na Universidade de Glasgow e decidi sair bem cedo para não me atrasar e ter tempo de curtir a caminhada. Pelo Google Maps, vi que o museu (e galeria de arte de mesmo nome) ficava no caminho e era gratuito – combo perfeito! 


O museu existe desde 1807 na universidade que, por sua vez, existe desde 1451! O prédio em si já impressiona e, no momento da minha visita, o primeiro saguão estava com uma exibição de peças de quando o Império Romano dominava a Grã-Bretanha.


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Prédio da Universidade de Glasgow que abriga o Hunterian Museum. (Fotos de Gerson Fernandino, CC BY SA 4.0)


Seguindo para outro salão, havia um mural explicando que as coleções ali apresentadas no museu foram, em sua maioria, de uma doação póstuma do Dr. William Hunter (1718-1783), médico obstetra que acumulou não apenas itens da área das ciências da saúde, mas também arte, geologia, livros... E foi nesse mural que percebi que algo era diferente nesse lugar. O último parágrafo dizia o seguinte:


Como instituição, o Hunterian não pode ser separado das estruturas econômicas e de poder que criaram e mantiveram a escravidão tanto no Império quanto na escravidão transatlântica em Glasgow, na Escócia e, mais amplamente, na Grã-Bretanha.


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Mural do Hunterian Museum explicando quem foi William Hunter e como o museu foi criado. (Fotos de Carla Elliff, CC BY SA 4.0)


Foi a primeira vez que vi esse tipo de reconhecimento explícito! E ler isso parecia automaticamente mudar a forma como eu estava encarando o museu e tudo que ele continha – era impossível “desver”.


Ainda digerindo essa informação, me deparei com uma estátua de mármore com imagens alusivas à escravidão sendo projetadas sobre ela. A placa informativa dizia:


James Watt – Estátuas e Escravidão

(...) Ao redor do mundo no verão de 2020, estátuas que pareciam permanentes e seguras estão sendo reavaliadas.

Esta estátua do engenheiro escocês James Watt (1736-1819) foi dada ao The Hunterian pelo filho de Watt em 1833. (...) Essa estátua ajudou a criar a imagem de Watt como dominante, acadêmico, justo: um herói.

O que essa estátua não nos conta é que o treinamento caro de aprendiz dele em Londres foi pago com os lucros do comércio de açúcar e tabaco de seu pai na América do Norte e Caribe. (...) James Watt e seu irmão John estiveram diretamente envolvidos, em ao menos uma ocasião, na compra e venda de uma criança negra escravizada na Escócia.


O contraste ali colocado me deixou incrédula que aquela estátua estivesse ali. Mas, antes que eu pudesse formar uma opinião mais sólida, segui lendo a placa e me deparei com as seguintes perguntas:

  • O que você pensa dessa estátua?

  • Ela pertence a esse lugar?

  • Uma estátua em um museu é diferente de uma estátua em uma rua ou praça?

  • Ela precisa de uma etiqueta melhor ou precisa ser exibida de outra forma?

  • Estátuas ajudam a gente a entender o passado ou elas, às vezes, impedem essa compreensão?


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Estátua de James Watt no Hunterian Museum e placa informativa/provocativa. (Fotos de Carla Elliff, CC BY SA 4.0)


Não sei (até agora) como responder! Eu mal tinha andado trinta passos e este museu já tinha virado uma experiência inteiramente diferente do que eu imaginava. Entrando agora no salão seguinte, encontrei mais informações sobre essas “plaquinhas disruptivas” que tornaram meu simples desvio pelo museu em algo transformador. Este movimento faz parte do projeto Curating Discomfort (algo como “curadoria do desconforto”), uma intervenção que “propõe provocações e intervenções desconfortáveis ​​para nos ajudar a compreender que os museus perpetuaram ideologias de supremacia branca” – como descrito no site do projeto.


E o desconforto não se restringe a questionar as figuras ali representadas em estátuas e quadros. Um ponto chave é questionar também como aquelas peças chegaram no museu. Elas foram roubadas? Se foram compradas, foi uma transação justa? As peças ali exibidas têm valor espiritual para povos que hoje não têm mais acesso a elas? Faz sentido exibir peças como “curiosidades” para entretenimento? Por exemplo, após uma revisão ética em 2024, optou-se por manter fechado o sarcófago da múmia de Shep-En-Hor, exibido no museu há mais de 200 anos, para garantir maior privacidade e respeito ao corpo ali presente. Fiquei pensando também na injustiça de não haver uma única espécie de coral brasileiro na área denominada “diversidade de corais”... (mas isso pode ser só meu viés falando!)


Exemplos de itens em exibição no Hunterian Museum sob a ótica da intervenção “Curadoria do Desconforto” (Fotos de Gerson Fernandino e Carla Elliff, CC BY SA 4.0)


Correndo o risco de me atrasar para meu compromisso, rodei uma última vez pelo salão principal e entendi que eu não chegaria em respostas simples para as perguntas que vi no início da visita. Então, responderei à pergunta do meu leitor hipotético, “como visitar um museu e olhar algo como um fóssil de dinossauro poderia ser um ato político?”, com outras perguntas. Você já se perguntou como aquele fóssil foi parar naquele museu? Qual a narrativa escolhida para contar aquela história e por quê? Seria aquele espécime um exemplo de contrabando? Se sim, uma opção é o repatriamento do fóssil ao país original, como no caso de um acordo recente assinado entre Brasil e Alemanha, com a devolução de fósseis de regiões como a Bacia do Araripe... e tantas outras perguntas possíveis para este e outros exemplos.


Espero que esse texto tenha despertado desconforto e inquietações. Viva o museu como um espaço político!


Sobre a autora:


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Oceanógrafa pela Unimonte com mestrado e doutorado em geologia pela UFBA. Pelas andanças da pós-graduação passou pela Universidad da Cantabria na Espanha, UFSC e FURG. Atualmente é pesquisadora pós-doc na USP.

O que mais gosta é a interdisciplinaridade do oceano. Já trabalhou com biologia pesqueira, recifes de coral, serviços ecossistêmicos, modelagem hidrodinâmica, gestão costeira, mudanças climáticas, geodiversidade, lixo no mar, políticas públicas... e acredita que tudo está conectado!









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