Por Raquel Saraiva
Integrantes da SWMS falam como é trabalhar contando com uma rede de apoio entre pesquisadoras.
Ilustração por Caia Colla.
Ser cientista não é fácil, e nós já abordamos algumas dessas dificuldades aqui no blog. Mas ainda mais complicado é ser pesquisadora em uma sociedade que valoriza cada vez menos a ciência e onde o machismo é normalizado. Para conseguir avançar na pesquisa em condições quase inóspitas, muitas mulheres buscam no apoio de familiares, colegas, professoras e orientadoras o suporte emocional necessário nos momentos de maior dificuldade.
Para entender a importância desse amparo, entrevistamos Ana Paula de Martini de Souza e Bruna Fernanda Sobrinho, integrantes da Society for Women in Marine Science (SWMS) no Brasil. A SWMS reúne cientistas de todos os níveis de carreira para discutir as experiências das mulheres nas ciências do mar e promover a visibilidade delas e de seus trabalhos na comunidade acadêmica. Fundada nos Estados Unidos (EUA) em 2014 por um grupo de mulheres do Instituto Oceanográfico Woods Hole (WHOI), desde maio deste ano a SWMS conta com uma filial no Brasil.
Vejam como Ana e Bruna começaram a desenvolver pesquisas em paleomagnetismo e algas tóxicas, respectivamente, e como seus caminhos se encontraram na busca de maior reconhecimento das mulheres na ciência.
Como vocês se tornaram cientistas marinhas?
(ANA) Desde pequena, quando visitava a praia, eu ficava intrigada com o mar. Queria conhecer tudo que se escondia dentro daquelas águas misteriosas. Porém nunca imaginei que poderia fazer disso uma profissão, até que um dia eu li em uma revista sobre a profissão de oceanógrafo e decidi que era isso que eu iria fazer. Em 2011, entrei na Universidade Federal do Paraná (UFPR), imaginando que iria trabalhar com a fauna marinha, até descobrir a oceanografia geológica. Encantada com os processos geológicos que moldam o planeta eu comecei a estagiar no Laboratório de Oceanografia Geológica, trabalhando com processos de morfodinâmica costeira.
Costumo brincar que o grande divisor de águas que me fez migrar da oceanografia biológica para a geológica foi a contaminação do meu cultivo de copépodes e a consequente morte de toda população. Assim decidi trabalhar com algo menos vivo, como os minerais, rochas e fósseis. A pura curiosidade me trouxe para a área do paleomagnetismo. Desde pequena eu queria saber o porquê das coisas. Como o planeta Terra evoluiu ao longo dos tempos, por que oceanos abrem e fecham, como e quando surgiram as circulações oceânicas e como elas foram evoluindo com o tempo, e nem me deixe começar a falar sobre as variações climáticas! Usando as rochas como livros para o passado, eu vi no paleomagnetismo e nas reconstruções paleoambientais a minha oportunidade de entender a evolução do nosso planeta.
(BRUNA) Não lembro exatamente em que momento eu escolhi a Oceanografia, acho que foi perto dos 13 anos. Imagina só: uma menina do interior do Paraná, a mais de 700 km do litoral falando que queria virar oceanógrafa. Muitas pessoas não entendiam o que eu faria ou o porquê da minha escolha, e acho que até hoje alguns não entendem. Eu não passei de primeira no vestibular da UFPR, mas passei no curso de Letras na UNIOESTE e resolvi ingressar na faculdade. Durante os primeiros meses, trabalhei como monitora de português e inglês na escola que estudei no ensino médio. Apesar de adorar o trabalho, meu olho não brilhava por gramática ou literatura. Larguei o curso, voltei para o cursinho. Prestei vestibular para Oceanografia e Ciências Biológicas em 2010 e, quando fui aprovada nos dois vestibulares, não tive dúvidas de qual escolher. Não foi fácil sair da casa dos meus pais aos 18 anos, mas acho que para ninguém é fácil. Nunca tive dúvidas de que queria cursar Oceanografia e essa certeza só foi se confirmando durante a faculdade. Apesar de nós oceanógrafos ainda termos pouco reconhecimento e poucas oportunidades de trabalho, eu sou muito feliz pela minha escolha.
Totalmente ao acaso eu comecei a trabalhar com a minha atual área de pesquisa. Bati na porta do meu atual orientador, morrendo de vergonha, e perguntei se ele conhecia alguém que trabalhava com produção de biocombustível. Não sei por que queria trabalhar com isso na época. Ele não trabalhava, mas me indicou um cara de uma outra cidade e disse que podia me ajudar. Eu pedi para frequentar o laboratório para ir me acostumando com a rotina de pesquisa. E há 7 anos estou frequentando o laboratório dele só para me acostumar com a rotina! Me apaixonei pelas microalgas quando uma colega falou que “elas podem produzir toxinas, mas não se sabe bem ao certo o porquê”. Gosto muito de trabalhar com algas tóxicas e adoro falar sobre florações de algas nocivas. É só conviver comigo um pouquinho que você vai enjoar de escutar sobre tudo isso. Nestes 7 anos já fiz alguns experimentos testando crescimento e produção de toxinas em diferentes condições ambientais, e ainda tem muitas perguntas que quero responder. Quanto mais conheço, mais curiosa fico! E esse é o ciclo natural na ciência: quanto mais respostas você tem, mais perguntas vão surgindo.
Você já sofreu algum tipo de assédio no meio acadêmico por ser mulher?
(ANA) Felizmente eu não sofri assédio no meio acadêmico por ser mulher. Mas essa é apenas a minha experiência e infelizmente não condiz com a realidade de muitas colegas cientistas. Já presenciei e recebi relatos de colegas de classe em situação de assédio por serem mulheres, já vi amigas desoladas e querendo desistir da carreira por motivos de assédio. Já presenciei professores e coordenadores abafarem denúncias de assédio com a justificativa de que o prosseguimento das denúncias só faria mal às vítimas, desencorajando-as a seguir com os processos. Em vista dessa grande problemática, e reconhecendo a experiência de outras colegas pesquisadoras resolvemos trazer para o Brasil a SWMS, onde queremos criar um canal de comunicação entre mulheres cientistas, nos apoiando e incentivando a ultrapassar os obstáculos.
(BRUNA) Eu pessoalmente nunca sofri nenhum assédio no meio acadêmico, mas isso não quer dizer que eu nunca vi ou soube sobre colegas que já sofreram. Eu acredito que toda vez que uma mulher é assediada ou passa por qualquer situação constrangedora só por ser mulher, de alguma forma todas nós somos afetadas também. Nós sabemos da realidade das mulheres dentro das universidades brasileiras: ainda somos a minoria entre os docentes e em cargos administrativos. E isso é apenas uma das justificativas que nos motivou a trazer a SWMS para o Brasil, queremos promover maior reconhecimento das nossas cientistas e nos unirmos cada vez mais!
O que torna ainda mais difícil a carreira de pesquisadora?
(ANA) Alcançar o nosso espaço. Às vezes parece que somos como o plâncton que não consegue vencer a correnteza, temos que provar o nosso valor todos os dias. Nossa voz não é ouvida, e sim abafada. Somos desacreditadas não pela nossa pesquisa, mas apenas por sermos mulheres. Enfrentamos assédio sexual, assédio moral, somos constantemente desencorajadas a seguir a carreira científica. Ainda mais desencorajadas quando nos tornamos mães e precisamos provar mais uma vez que a maternidade não nos deixa menos capaz.
(BRUNA) Se você for mulher, além das dificuldades, a sua estabilidade física e emocional será questionada e testada com uma frequência relativamente alta. Eu acho que a falta de visibilidade, a baixa representatividade docente e em cargos administrativos e o machismo que ainda existe dentro das instituições são apenas alguns exemplos das nossas dificuldades. Ainda somos a minoria entre os bolsistas de produtividade do CNPq, mas por quê? Além disso, se você for mulher, questões banais como preocupação em não usar roupas muito curtas, justas e decotadas em embarques ou até mesmo no cotidiano, serão “comuns” na sua vida. Se você quiser ser mãe ou engravidar durante seu processo de formação, terá mais dificuldade pela frente. E estes são apenas dois exemplos de coisas que nossos colegas homens não precisam se preocupar. Fazer ciência no Brasil, por si só, já é um desafio. É preciso amor pelo que faz e muita força e apoio para não se intimidar com esse cenário que é muitas vezes hostil.
E na sua carreira, qual foi a maior dificuldade enfrentada?
(ANA) Os maiores sufocos na carreira acadêmica estão relacionados ao sucateamento da ciência no país. Os constantes cortes na ciência e educação dificultaram muito a realização da minha pesquisa e das de outras colegas também. Quase não há dinheiro para as saídas de campo, faltam materiais nos laboratórios, há problemas de estruturação dos prédios da faculdade e muitas vezes temos que investir recursos próprios para seguir realizando pesquisa. Acredito que muitos de nós tenham passado pelos mesmos problemas de falta de verba e investimento na pesquisa, mas seguimos adiante pois acreditamos no importante papel da ciência para a sociedade e por que amamos o que fazemos.
(BRUNA) Acredito que o meu maior sufoco está sendo no presente, e ainda estou aprendendo a lidar com ele. Faço mestrado em Botânica, que é uma área diferente da minha formação, e desde passar no processo seletivo até o momento atual está sendo puro desafio. Pedi prorrogação de dois meses do meu prazo para defender e estou na parte final da escrita. Esta é a parte mais cansativa do trabalho. Apesar de trabalhar com microalgas há um tempo, o meu projeto foi novidade para mim: estou descrevendo uma floração anômala de uma espécie nociva que atingiu a costa sul do Brasil. Embora a temática seja muito divertida e motivadora para mim, ela também é muito desafiadora. Tenho dois orientadores que me ajudam e não poupam esforços para revisar o trabalho, deixar ele incrível e publicável em uma revista de alto impacto. Mas o resultado de tanta correção é que já estou exausta e ainda tem chão pela frente. Tem dias que eu produzo muito e tem dias que não consigo escrever uma única frase. Nestes dias mais difíceis, tento lembrar que isso é uma fase que está acabando e tento aproveitar ao máximo esse momento para fazer outras coisas que não tenham relação com a minha dissertação. Sempre que necessário eu me lembro que a minha saúde física e psicológica é muito mais importante que qualquer título, é muito fácil esquecer isso durante o processo.
Como integrar a SWMS te influencia?
(ANA) Fui criada e ensinada por mulheres fortes e incríveis. Hoje eu sou rodeada de colegas cientistas excepcionais, porém há ainda barreiras que precisamos ultrapassar juntas para ganharmos nosso devido reconhecimento e, acima de tudo, o respeito. A sociedade em si é um movimento especial, no qual temos a oportunidade de conversar e conhecer as dificuldades que outras cientistas ao redor do mundo enfrentam, e como elas superam essas adversidades. É também um local de apoio entre mulheres que estão dispostas a escutar, acolher e ajudar. No Brasil, esse chapter [como a SWMS se refere às filiais] está apenas iniciando, mas contamos com o apoio das fundadoras do movimento, que estão bastante entusiasmadas, e sabemos que juntas podemos ir longe.
(BRUNA) Apesar da Sociedade ter começado há pouco tempo, fazer parte desse movimento já me apresentou pessoas que não eram do meu convívio e me aproximou mais de algumas amigas. Além do contato com cientistas de diferentes universidades do Brasil, estamos conhecendo cientistas dos outros chapters da Sociedade que se espalham por várias universidades dos EUA e da Nigéria. Apesar das diferenças que temos, vivemos realidades parecidas: o pouco reconhecimento das mulheres dentro da academia. Nós estamos apenas começando, mas temos grandes ideias e isso é muito motivador, tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Me sinto inspirada em saber que somos muitas e que estamos trabalhando em prol do mesmo objetivo: buscar maior visibilidade para as mulheres dentro das ciências marinhas.
Quais são suas maiores inspirações na ciência? (ANA) Eu cito de imediato Sylvia Earle e Lisa Tauxe. A Sylvia, primeiramente por suas ações de conservação ao redor do mundo, por ser a mulher em evidência quando o assunto é a saúde dos nossos oceanos, e por sua paixão e devoção pela conservação. A Lisa Tauxe por ser a grande referência acadêmica na minha área de pesquisa, por ser uma cientista premiada e acessível. Mas acima de tudo, todos os dias eu sou inspirada por amigas mulheres cientistas que estão ultrapassando os obstáculos, alcançando cada vez mais espaço no meio científico, e acima de tudo, apoiando outras mulheres (como eu) a alcançar seus objetivos.
(BRUNA) Tenho um grupo de colegas cientistas bem inspiradoras, cada uma do seu jeito. Ver as minhas amigas na luta diária, com muito bom humor (às vezes [risos]), saber que sempre arrumamos um tempinho para escutar umas às outras, e que estaremos presentes, nem que seja para reclamar junto e dividir uma cerveja (mesmo que a distância). Isso me motiva muito a “seguir com o barco”, porque sei que não estarei sozinha. Eu também tive algumas professoras durante a graduação que sempre nos motivaram a “falar mais alto” e sempre deixaram as portas abertas para que eu pudesse ir lá contar qualquer ideia ou tomar um café. Quando tivemos a ideia de trazer a Sociedade para o Brasil, corri para a sala delas no Centro de Estudos do Mar (CEM-UFPR) para saber o que elas achavam e se elas queriam se juntar a nós. Elas são o tipo de professora que quero ser. Eu também poderia citar qualquer outra grande cientista que fez um grande trabalho ou teve uma longa carreira com muitas histórias de superação, as quais servem de inspiração para todas. Porém, no dia a dia, quando dá vontade de chutar o balde, quem mais me inspira e motiva é quem caminha junto comigo.
Se pudessem dar um conselho para a Ana e a Bruna de dez anos atrás, o que diriam?
(ANA) Ai, meu Deus!!! Fico emotiva só de pensar... eu diria para ela não ser tão dura consigo mesma e a aprender a contar com os amigos e a sentir o amor das pessoas ao redor. Diria que mares tempestuosos estão no horizonte, mas que aos poucos ela irá aprender a navegá-los. Diria para não se deixar abater com as opiniões dos outros, pois isso tem mais a ver com os problemas deles do que com você mesma. Eu queria poder ajudá-la a se defender diante do assédio moral dentro do meio acadêmico. Eu queria poder abraçá-la durante as crises de ansiedade e depressão, dizer que ela é mais forte do que pensa e que dias melhores virão.
(BRUNA) A Bruna de dez anos atrás tinha 16 anos e estava se preparando para fazer vestibular para Oceanografia. Eu diria para ela: “Tudo bem você querer ser cientista e fazer um curso que ninguém nunca ouviu falar. Não vai ser fácil, mas essa vai ser a melhor escolha que você poderia ter feito. Você vai conhecer grandes pessoas e aprender muito com elas. De alguma forma, você nunca mais será a Bruna que era e isso te deixará muito feliz. Então, não desanime e persista!” E vou aproveitar e dar um conselho para a Bruna de daqui 10 anos: “Não se esqueça que com 26 anos você queria fazer a diferença na realidade que vivia e lutava pelas coisas que acreditava. Então, não se acomode na sua vida e nas suas próprias conquistas, ainda tem muito que você pode fazer para colaborar”. Nunca se sabe quando vou precisar voltar e ler essa minha frase motivadora para mim mesma [risos]!
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Sobre as entrevistadas
Ana Paula de Martini de Souza faz parte da SWMS desde o comecinho! “Na realidade a Bruna Fernanda me procurou quando o chapter brasileiro era apenas uma ideia e começamos a reunir mulheres que sabíamos que iriam apoiar o movimento”. Se graduou em Oceanografia pela UFPR, com graduação sanduíche em San Diego pela Universidade da Califórnia (UCSD). Desde 2018 faz mestrado em Oceanografia pela Universidade de São Paulo (USP).
Bruna Fernanda Sobrinho é uma das fundadoras do SWMS Brasil. “Nos tornamos um chapter da SWMS oficial em maio de 2019, mas já estamos nos organizando desde setembro de 2018”. É graduada em Oceanografia pela UFPR e mestranda no Programa de Pós-graduação em Botânica - UFPR.
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