Por Marina Tonetti Botana
Ilustração: Caia Colla.
Foi durante a minha busca por nadadores de longa distância que descobri Ben Lecomte. Ben é um atleta de endurance (modalidades de esportes aeróbicos de intensidade média ou baixa e longa duração, como maratonas) que, em 1998, cruzou o Atlântico Norte em uma campanha que subsidiava a luta contra o câncer. Para minha surpresa, depois de muito planejamento, este ano ele estava atravessando o Oceano Pacífico. Porém, dessa vez, em uma campanha de conscientização sobre a questão da poluição marinha por plásticos e com a missão de chamar atenção sobre a importância da preservação dos oceanos. O projeto já contava com parcerias de grupos de pesquisa de importantes universidades de estudos oceanográficos, como o Scripps Institution of Oceanography e a Universidade do Havaí (UH). Além disso, a iniciativa já tinha 14 episódios filmados e buscava produzir mais conteúdo para que, no fim, tudo virasse um documentário. Os organizadores também haviam conseguido patrocínio de marcas de produtos sustentáveis, como a icebreaker, que confecciona roupas exclusivamente com fibras de origem vegetal.
Naquele momento, devido a problemas na embarcação, eles se encontravam no Havaí e seguiriam, dentro de poucas semanas, até a Califórnia. A nova rota pelo Pacífico Norte estava traçada para atravessar a maior ilha de lixo do mundo, estimado em cerca de 1,6 milhões de km2. Ben faria novamente esta travessia a nado, na companhia de uma equipe de cientistas e ativistas responsáveis pelo levantamento de dados e coleta de material. Surpreendentemente, havia duas vagas abertas para cientistas a bordo nesta nova etapa. A tripulação seria composta por somente 10 pessoas, das quais quatro eram da equipe pessoal de Ben. As outras 6 vagas eram rotativas para profissionais da ciência, educação e produção de mídia.
Na época eu estava prestes a terminar o meu mestrado e vi a vaga de cientista como uma oportunidade única de vivenciar uma experiência fora da academia em nome de uma causa com os propósitos ambiental e social. Acredito que a única forma de transformar efetivamente a mentalidade e os costumes do ser humano é através da educação. Não adianta simplesmente “proibir” jogar lixo, ou “obrigar” a reciclar e fazer uso mais sustentável dos produtos. É preciso que as pessoas entendam os porquês dessas questões serem tão relevantes e que, a partir daí, contribuam para fazer a diferença.
Submeti uma carta de intenção, juntamente com o meu CV para a vaga. Apesar de ainda estar há um tempo relativamente curto na academia, acreditei que os meus princípios, junto às experiências na USP e fora do país em outros projetos, seriam bem vistos. Ademais, sou triatleta de provas longas como ironman (3,8 km natação, 180 km ciclismo e 42 km corrida) e, também tenho experiência em apoiar outros atletas em ultra distâncias. Acreditei que estas questões extracurriculares poderiam ser um diferencial importante. No mundo do esporte e da ciência estamos muito sujeitos a falhas e fracassos, talvez muito mais do que em quaisquer outras profissões. Viver um pouco das duas realidades me obrigou a desenvolver muito foco e determinação para buscar meus objetivos e a enxergar a execução de todos eles como parte do meu propósito de vida. Na carta de intenção levantei todas estas questões e discorri cada frase com cérebro, corpo e alma. Acreditei que a causa de Ben também poderia ser minha.
Os dias foram se passando e, quando menos esperei, eu estava na seletiva final para as entrevistas. Fui testada e avaliada em diferentes âmbitos nas conversas com Ben e os tripulantes da equipe. Além dos questionamentos acadêmicos, testaram meu psicológico fazendo uma série de outras perguntas. Ficaríamos por volta de 100 dias no mar, confinados no espaço do veleiro, sem água doce para tomar banho e com quase nenhuma comunicação. Fui alertada que, muito provavelmente, poderia ser a única mulher a bordo, junto com um grupo de 9 homens. Felizmente, nenhuma destas questões me intimidou e fui selecionada.
A rota da expedição foi traçada pelo Prof. Oceanógrafo Físico Nikolai Maximenko (UH) em seu projeto de monitoramento de lixo/plástico marinho via satélite. Cruzaremos o maior número possível de ilhas de lixo durante a expedição. Faremos observações visuais, junto com coleta de diferentes tamanhos de partículas de plástico com redes de nêuston. Além das partículas, coletaremos os organismos que crescem e povoam os diferentes tipos de plástico, contribuindo na disseminação de espécies no giro subtropical do Pacífico Norte.
Microplásticos e rede de nêuston. Créditos: Hannah Altschwager, The Vortex Swim (C).
Os projetos parceiros visam entender melhor a conectividade da bioinvasão de espécies que povoam as ilhas de lixo. Eu serei responsável pela coordenação e registro das coletas a bordo. Além disso, nadarei ao lado de Ben sempre que possível. Ele nadará por volta de 8 horas/dia, distribuídas em 2 períodos de 4 horas cada. Nas entrevistas ele me disse que fui a única pessoa que ele havia entrevistado que se ofereceu para acompanhá-lo…
Chegarei no Havaí dentro dos próximos dias e zarpamos até o final do mês de maio. Mal posso esperar para conhecer pessoalmente toda a tripulação! Também fiquei feliz em descobrir que o outro cargo de cientista será preenchido por uma mulher, Juliette (bióloga marinha e americana). Me sinto extremamente feliz e grata por representar, primeiramente, as mulheres cientistas, e, depois, o Brasil em um projeto com uma causa tão nobre e atual.
Vivemos tempos difíceis na ciência brasileira, de certa forma ainda mais desafiadores para as mulheres. Todavia, creio que são nos tempos de dificuldades em que devemos ousar criar nossas próprias oportunidades. Nessa expedição, de alguma forma, ciência e esporte se uniram na busca do meu propósito, refletindo diretamente o meu estilo de vida. Espero que outras meninas e cientistas possam se aventurar a arriscar mais em busca de seus sonhos em um oceano vasto de mistérios e oportunidades.
Glossário:
Ilha de lixo: regiões nos oceanos que favorecem a concentração de lixo na superfície da água por causa dos giros oceânicos, que são grandes sistemas de circulação de correntes oceânicas.
Nêuston: organismos aquáticos que vivem em águas superficiais, nos primeiros 10 cm da coluna de água. As redes de nêuston são utilizadas para capturar estes organismos.
Para saber mais:
https://www.seeker.com/the-swim - site oficial.
https://www.youtube.com/playlist?list=PL6uC-XGZC7X7iQ31AN0hszm5a3RCosk00 - canal no youtube com os episódios que já foram feitos .
Mari, que texto lindo e inspirador, me tocou como cientista-mulher e ser humano preocupado com o planeta. Obrigada por compartilhar sua experiencia. Aguardamos noticias da segunda pernada. Buen viento y buena mar.