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Do satélite ao microscópio

Atualizado: 9 de dez. de 2020

Como dados remotos me ajudaram a estudar ovos de peixes


Ilustração: Joana Ho


Muitas pessoas não entendem porque eu, bióloga, mestre e doutora em oceanografia, fui fazer um pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos - SP. O entendimento fica ainda mais difícil pelo fato de eu ter trabalhado, desde a graduação, com peixes. Meu marido frequentemente brinca que eu fui trabalhar no Instituto Nacional de PESCA Espacial, ou que eu estou caçando a constelação de peixes.


O que muitas pessoas não sabem é que os satélites são grandes aliados dos estudos oceanográficos, fornecendo dados que podem ser usados em diversos estudos. Nós até já postamos aqui no blog um texto sobre a “razão de ser” da oceanografia por satélites.


Ok Jana, eu já reli o post acima e entendi que alguns satélites fornecem dados para a estimativa de variáveis importantes como temperatura superficial, concentração de clorofila-a, altura de ondas, campo de ventos superficiais, entre outros... Mas onde entram os peixes?


Para conectar os satélites e os ovos de peixes, eu vou precisar voltar lá no comecinho do meu doutorado. O principal objetivo do meu projeto de pesquisa era avaliar as flutuações de longo-prazo na abundância e distribuição dos ovos e larvas da Engraulis anchoita, uma espécie de peixe da família das manjubinhas, muito pescada na Argentina e no Uruguai, que chamarei apenas de anchoíta. Com isso, eu buscava compreender os fatores oceanográficos que causavam essas flutuações, onde estavam os locais de desova e fornecer informações que podem vir a ser usadas num futuro manejo da espécie. A anchoíta não é pescada comercialmente no Brasil, mas existem estudos sobre a viabilidade de começar a pescá-la comercialmente no sul do país.


Ovos de anchoíta observados através de um estereomicroscópio. Dá até para ver o embrião do peixinho em vários ovos.

As amostras de ovos da anchoíta que eu analisei foram coletadas em diferentes anos entre 1970 a 2010, em toda a Plataforma Continental Sudeste do Brasil (PCSE), que se estende do Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, ao Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina. Para identificar os ovos da anchoíta, eles eram medidos (eu já falei do método que elaboramos para identificar mais rapidamente os ovos em outro post). E foi durante essas medições que notamos que os ovos do sul da área de estudo eram maiores do que os do norte. Notamos também que os ovos amostrados durante o inverno eram maiores do que os do verão. E como cientistas curiosos, nos questionamos: por quê?


Sabemos, por estudos anteriores, que:


1- A anchoíta é amplamente distribuída sobre a plataforma continental do Atlântico sudoeste, de Vitória, no Brasil (20°S) ao Golfo de São Jorge, na Argentina (48°S);


2- Sua população é dividida em três estoques: o patagônico (48-41°S, ocorre somente na Argentina), o bonaerense (41-27°S, ocorre na Argentina, no Uruguai e no sul do Brasil) e o da Plataforma Continental Sudeste do Brasil (PCSE, 27°-20°S, estoque unicamente brasileiro);


3- O tamanho do corpo e dos ovos dos indivíduos do estoque bonaerense são maiores do que os da PCSE.


A partir dessas informações, nós levantamos uma hipótese para explicar porque no inverno o tamanho dos ovos da anchoíta era maior do que no verão: seria possível que os indivíduos maiores do estoque bonaerense estivessem migrando para o norte para desovar durante o inverno. Para confirmar essa hipótese nós pegamos dados fornecidos por satélite, ou seja, dados gerados remotamente, e desenhamos mapas de distribuição horizontal de temperatura superficial e da concentração de clorofila-a na superfície do mar para o Oceano Atlântico Sudoeste durante o verão e inverno de 2001 e 2002. Com isso, buscamos visualizar um possível fluxo de água que poderia guiar a migração dos adultos de anchoíta.


O que notamos, através das imagens obtidas (veja a figura abaixo), foi que o fluxo da água da Pluma do Rio da Prata (lá na divisa da Argentina com o Uruguai) segue em direção ao norte apenas durante o inverno. Como a anchoíta gosta muito da região em que a água do Rio da Prata encontra o mar, acreditamos que esse fluxo pode servir como um guia para a migração de indivíduos da população bonaerense para desovar na região central e norte da PCSE , durante a estação mais fria do ano. Isto indica que nossa hipótese pode estar correta, e que os ovos encontrados no inverno na PCSE podem mesmo pertencer à população bonaerense.


Distribuição horizontal da temperatura superficial e da concentração de clorofila-a durante o verão e inverno de 2001. A linha preta destaca a região em que os ovos da anchoíta foram amostrados. Note, que os dados remotos possibilitaram analisar uma área muito mais ampla do que a amostrada. No inverno é possível ver um fluxo de água fria e com alta concentração de clorofila-a para o norte.

Lógico que existem outros fatores incluídos e discutidos no estudo. Então, para os mais curiosos que quiserem se aprofundar no assunto, compartilho o link do artigo publicado em 2017 na Fishery Bulletin, uma revista científica (https://www.st.nmfs.noaa.gov/spo/FishBull/1154/delfavero.pdf). Aqui, eu quis apenas trazer um exemplo de como os satélites ajudam até mesmo no estudo com ovos de peixes. A ciência é realmente fascinante, não é?!


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