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O oceano e o ENEM

Atualizado: 5 de jun. de 2023

Por Maria Luiza Coutinho



O oceano é importante para a manutenção da vida no planeta Terra, como na regulação do clima e produção de oxigênio, sendo o verdadeiro “pulmão do mundo". Muitos de nós sabemos disso - ou pelo menos a nossa comunidade Netuniana sabe! Mas a questão é: por que a temática do oceano é tão negligenciada nas questões do ENEM? Assuntos como a composição da Terra são explorados rotineiramente, mas por que o oceano, que representa cerca de 70% do planeta, não?


Me dei conta disso quando ingressei no curso de Oceanografia da UFPE e, ainda no primeiro semestre, na disciplina de “Introdução à Oceanografia”, a professora Monica da Costa passou um trabalho no qual eu e a Anna Carolina Felipe, deveríamos quantificar as questões do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em que a temática do oceano era abordada. O resultado foi surpreendente e isso nos intrigou. Desde então, levamos essa informação a eventos nacionais de Oceanografia para ampliar o debate.


O ENEM existe desde 1998 e surgiu com o propósito de avaliar o conhecimento dos concluintes do ensino médio no Brasil. Com a reestruturação ocorrida em 2009, o ENEM passou a ser uma das principais vias de acesso ao ensino superior no país. As questões da prova, principalmente a redação, abordam temas da atualidade dentro de um contexto aplicado, integrando todas as áreas do saber científico e do cotidiano, a fim de estimular o desenvolvimento de soluções para os problemas do mundo contemporâneo.


Apesar do novo rearranjo da prova do ENEM, percebe-se que questões que abordam assuntos relacionados ao oceano apresentam-se de maneira escassa. Basta ter feito a prova, pelo menos uma vez na vida, que isso fica perceptível. Podemos contar nos dedos de uma única mão quantas questões caíram. Assim, começamos a nos questionar se isso estaria relacionado com a inexistência da abordagem do assunto nas escolas do Brasil, pois nota-se que, quando discutido, é geralmente nos grandes centros urbanos litorâneos.


Fizemos uma revisão de 1800 questões que formam 20 cadernos de provas do ENEM dos anos de 2014 a 2021, incluindo os formatos digitais do exame que aconteceram em 2020 e 2021. Os temas das redações desde a criação da prova também foram analisados a fim de quantificar quantos abordavam o oceano de maneira direta ou indireta. As questões, após identificadas, foram separadas em 5 categorias: oceanografia biológica, oceanografia física, oceanografia química, oceanografia socioambiental e oceanografia geológica. E adivinhem… O resultado foi chocante!


Apenas 46 questões, dentre 1800, abordavam a temática do oceano, representando um valor de 2,6%. Dentre elas, a área mais abordada é a oceanografia biológica, seguida pela oceanografia socioambiental, oceanografia química e física. A menos abordada foi a oceanografia geológica, com somente 2 questões.

Gráfico em formato de círculo com duas cores amarela e vermelha, sendo a cor amarela predominante. No canto esquerdo há uma legenda falando que a cor amarela representa as questões que não abordavam, e a cor vermelha, as questões que abordavam a temática do oceano.

Total de questões (N=1800) das edições do ENEM 2014-2021 que abordavam a temática do oceano (N=46). Fonte: Maria Luiza R Coutinho com licença CC-BY-NC-ND.

Gráfico com barras azul. No canto esquerdo tem “Número de questões” representando o eixo y e na parte inferior tem “Ano” representando o eixo x e com os anos de 2014 a 2021.

Gráfico com o número de questões sobre a temática do oceano por ano do ENEM. 2020 (D) e 2021 (D) representam a versão da aplicação digital do exame. Fonte: Maria Luiza R Coutinho com licença CC-BY-NC-ND.


Mas o que esses dados querem nos dizer? O óbvio! O oceano está sendo negligenciado através de práticas humanas que tem gerado inúmeros danos como a poluição ou a extinção de espécies. Grande parte destes problemas estão associados à falta de conhecimento da população sobre a influência dos oceanos em todo o sistema Terra e devido a isso, a importância de que todos o conheçam, pois conhecendo podemos começar a ter boas práticas para preservá-lo.


Estudos mostram que o tema Impactos Ambientais sempre foi abordado nas provas do ENEM, mas de maneira escassa e desintegrada. Esse cenário não é diferente quando se observa o ensino do mesmo nas escolas brasileiras. Muitas vezes, o assunto não possui abordagem ampla, tornando-o de difícil entendimento e mecânico para os alunos, que findam não formando uma visão crítica sobre o assunto. Isto faz com que os espaços de manifestações se tornam restritos a apenas uma parte privilegiada da sociedade.


Uma vez que as escolas brasileiras possuem uma falsa noção de sucesso diante ao quantitativo de aprovações nos vestibulares, as práticas pedagógicas e os professores têm sua autonomia limitada aos conteúdos mais explorados na prova. Com isso, assuntos como o funcionamento do oceano, de extrema importância para a população, são abordados superficialmente quando convém.


O próprio termo “Cultura Oceânica” surgiu no início dos anos 2000 nos Estados Unidos quando pesquisadores perceberam que a temática do oceano não era abordada na grade curricular das escolas do país. O cerne do termo é a influência que o oceano tem nos humanos e, também, a influência que os humanos têm no oceano, realizando uma abordagem holística não só das relações naturais, mas compreendendo as relações humanas sociais, históricas, culturais e econômicas.


A perspectiva que se tem é que com a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável essa realidade mude, mas para isso é necessário que haja uma maior difusão da cultura oceânica, não só no litoral, mas também, no interior do país. Para isso, é necessário um maior fortalecimento entre a universidade e a comunidade através da atuação e criação de projetos extensionistas, formações de professores para que possam repassar o conhecimento para seus alunos de forma íntegra e, claro, que a temática do oceano seja integrada não só a disciplinas de ciências exatas da natureza, mas de forma multidisciplinar. E nós, cientistas e amantes do mar, precisamos nos mobilizar para isso!


 

Os dados apresentados foram publicados por mim e pela Ana Carolina Felipe da Siva na Tropical Oceanography, Recife, v. 49, n. ESPECIAL, p. 5-8, 2022 (acesse aqui)


 

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