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Paleoceanografia – como e por que devemos reconstruir o passado dos oceanos?

Por Milena Ceccopieri

Pesquisadora de camiseta verde e jaleco branco por cima. Ela olha no microscopio. Na sua frente a imagem de um testemunho de sedimento dividido em fatias. Cada fatia representa um livro que conta a história de uma período da História da Terra

Ilustração por Alexya Queiroz.


Um dos assuntos que mais ouvimos falar hoje em dia são as mudanças climáticas e suas consequências para o futuro do planeta. O aquecimento global se tornou evidente a partir da observação do aumento da temperatura média global do ar e do oceano provocado pelo aumento na concentração de gases do efeito estufa na atmosfera provenientes das atividades humanas, tais como a queima de combustíveis fósseis, a industrialização e o desmatamento. Em um relatório especial feito em 2018 a convite da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, o Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPPC) mostrou que a temperatura global já se encontra 1,0 °C acima dos níveis pré-industriais, podendo atingir 1,5 °C entre 2030 e 2052, o que já vem trazendo alguns impactos para os ecossistemas terrestres e oceânicos e podem trazer consequências ainda mais drásticas para o clima da Terra.


Esquema do aumento da temperatura média global de acordo com os relatórios de previsão até o ano de 2080. O primeiro esquema mostra temperaturas mais amenas no caso de as emissões de gás carbônico diminuírem. O segundo esquema mostra temperaturas muito mais elevadas, no caso de as emissões de gás carbônico triplicarem até 2080.

Projeção para o aumento da temperatura global até 2090 de acordo com o aumento do CO2. Figura traduzida via Wikimedia. Licença: CC BY SA 4.0 International



Mas afinal, se estamos tão preocupados com as mudanças climáticas do futuro, por que precisamos estudar o passado? O conhecimento sobre como o clima do nosso planeta se comportava no passado sob determinada condição nos ajuda a entender e a prever como o clima irá se comportar no futuro se nos depararmos com condições similares. Por exemplo, sabemos hoje que a concentração de CO2 na atmosfera está subindo rapidamente, mas não sabemos ao certo quais serão as consequências desse aumento. Para tentar prever estas consequências, precisamos levantar algumas perguntas. Esse aumento já aconteceu antes? Em que velocidade? A temperatura aumentou? E o nível do mar? Como era o clima na Terra no período em que a temperatura e a concentração de CO2 eram similares ao que vemos hoje? É aí que entram os estudos paleoclimáticos e paleoceanográficos.


Gráfico mostrando a variação nas concentrações de CO2 e CH4 ao longo do tempo estimados a partir de testemunhos de gelo da Antártica e da Groenlândia. O eixo x representa a idade, que vai de 400.000 anos atrás até o presente. O eixo y da esquerda mostra os valores de CO2 em ppm e o eixo y da direita mostra os valores de CH4 em ppb e os valores de temperatura. O gráfico mostra um aumento abrupto de CO2 e CH4 no presente. O gráfico também mostra as 4 glaciações que ocorreram durante este período, onde os valores de CO2, CH4 e temperatura se encontram mais baixos.

Variação das concentrações de CO2 e CH4 com base em testemunhos de gelo da Antártica e da Groenlândia. Figura traduzida via Wikimedia. Licença: CC BY SA 4.0 International



O termo “paleo” significa antigo, velho. Na paleoceanografia, o pesquisador atua como um detetive do passado, investigando a partir de evidências como a relação entre os oceanos e o clima da Terra varia em diferentes escalas de tempo, podendo ser décadas, centenas, milhares, ou até mesmo milhões ou bilhões de anos atrás.


Mas qual seria o papel dos oceanos no clima global? O balanço de energia da Terra é modulado por 4 compartimentos: atmosfera, oceano, continente e o gelo. Em termos de troca/transporte de energia, os principais compartimentos são a atmosfera (mais dinâmica) e o oceano (mais lento). Os oceanos desempenham um papel fundamental no clima global devido à capacidade de armazenar e transportar grandes quantidades de calor, sendo o maior reservatório de calor do planeta! O calor proveniente do sol chega com muito mais intensidade nas baixas latitudes e é redistribuído para altas latitudes através da circulação oceânica.


Para se ter uma melhor compreensão desse transporte de calor, é importante compreender a circulação termohalina como um todo. A circulação termohalina é impulsionada por mudanças potenciais de temperatura e salinidade entre diferentes massas d’água, gerando diferenças de densidade. A formação de gelo em altas latitudes resulta na formação de uma água fria de maior salinidade que é extremamente densa e vai afundar gerando uma corrente de fundo e impulsionando essa circulação global. Então se a circulação termohalina está diretamente relacionada à formação do gelo, o que pode acontecer com ela num cenário de aumento de temperatura global e derretimento das geleiras? Como fica o transporte e distribuição do calor global diante de um enfraquecimento da circulação termohalina? Os paleoceanógrafos estão preocupados em reconstruir parâmetros como paleotemperatura e paleosalinidade para investigar os padrões de variação na circulação global no passado, o que possibilita avaliar as consequências das variações no presente e no futuro.


Ok, mas se os cientistas só começaram a coletar e registrar dados de temperatura e salinidade a partir dos anos 50, como podemos reconstruir as características da água do mar de milhões de anos atrás? Como as propriedades do passado dos oceanos não podem ser medidas diretamente, nós medimos de maneira indireta através de ferramentas ou os chamados proxies (não sabe o que é proxy? Não tem problema, já já vem a explicação). A matriz principal da paleoceanografia, ou seja, o tipo de amostra onde medimos os proxies, são os testemunhos marinhos, que são uma seção vertical da coluna sedimentar coletada do fundo do oceano. Esses registros sedimentares são formados após muitos e muitos anos de deposição de partículas nas bacias oceânicas. Essas partículas vão sendo depositadas em camadas acumuladas uma por cima da outra e guardam informações sobre as condições ambientais do oceano do momento da deposição.


Figura esquemática mostrando as etapas de amostragem de um testemunho marinho. A figura mostra uma seção meridional do oceano com o sedimento marinho estratificado na parte inferior, seguindo pela coluna d’água logo acima e um navio operando na superfície. Embaixo do navio se encontra o cabo do amostrador que desce e por fim está conectado ao amostrador que se encontra inserido no sedimento do fundo. Ao lado do navio são mostrados desenhos do testemunho seccionado após a amostragem.

Amostragem de testemunho marinho. Figura traduzida e adaptada via Wikimedia. Licença: CC BY SA 4.0 International



Imagens de uma amostragem de testemunho marinho com piston corer em um navio de pesquisa da Marinha do Brasil. A imagem da esquerda mostra o momento em que o amostrador é retirado da água e posicionado no deck do navio. A imagem da direita mostra o testemunho sendo cuidadosamente retirado de dentro do amostrador.

Amostragem de testemunho marinho. Fonte: Milena Ceccopieri com licença CC BY-SA 4.0.


Fotografia tirada dentro do repositório de testemunhos marinhos do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha. A foto mostra um corredor com prateleiras que vão do chão ao teto de ambos os lados, preenchidas com centenas de testemunhos marinhos devidamente armazenados e identificados. Ao fundo, no final do corredor, se encontra um homem manuseando um destes testemunhos.

Repositório de testemunhos marinhos do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha via Wikimedia. Licença: CC By SA 2.5 Generic


Existem outras matrizes ambientais que também guardam informações sequenciais sobre o paleoclima da Terra, tais como os corais e os testemunhos de gelo. Dá até para se obter informações da atmosfera de centenas de milhares de anos atrás a partir de bolhas de ar encontradas nesses testemunhos de gelo! Nos continentes temos ainda os anéis de árvores, espeleotemas e registros sedimentares lacustres. A grande vantagem dos testemunhos marinhos em relação aos outros registros é que eles abrangem um período maior, podendo chegar até 100 milhões de anos!


A idade de um testemunho marinho é algo que precisa estar bem definido antes de tudo, pois é ela quem limita o período e resolução temporal desse registro sedimentar que será a base de toda a interpretação. Essa cronologia é desenvolvida a partir da datação de alguns pontos do testemunho e construção de um modelo de idade. Existem diferentes tipos de datação adequados para cada período e tipo de material a ser datado, como por exemplo a datação pelos isótopos radioativos carbono-14 e chumbo-210. No caso dos testemunhos marinhos, o material mais indicado para a datação são as carapaças dos foraminíferos, organismos unicelulares bem pequenos que produzem uma estrutura composta por carbonato de cálcio, e a datação é comumente feita a partir do 14C, que cobre um período de até 45-50 mil anos, podendo se estender até centenas de milhares de anos quando associado a outras ferramentas.

Figura esquemática mostrando as etapas de seccionamento do testemunho e triagem de foraminíferos. No lado esquerdo superior é mostrado o desenho de um testemunho seccionado, que seria a primeira etapa. Um pouco mais à direita, é mostrada a etapa de sub amostragem de uma das seções do testemunho e sua lavagem dentro de um Erlenmeyer. Em seguida esse Erlenmeyer é vertido sobre uma peneira e um bécher para separação da fração mais grossa do sedimento contendo os foraminíferos. A última etapa se encontra abaixo e representa uma mulher separando os foraminíferos utilizando uma lupa ou microscópio.

Seccionamento do testemunho e triagem de foraminíferos. Figura traduzida e adaptada via Wikimedia. Licença: CC BY SA 4.0 International



Mas o que é exatamente um proxy? O proxy consiste em uma pista ou informação preservada ao longo do tempo que pode ser quantificada e guarda alguma relação com um parâmetro de interesse que nós não conseguiríamos medir diretamente. Por exemplo, a proporção entre o componente X e o componente Y em uma amostra de sedimento marinho pode estar relacionada a temperatura da água do mar no momento em que estes componentes foram formados na coluna d’água. Quanto mais fria a água, maior a formação de X, e quanto mais quente, maior a formação de Y. Se os componentes X e Y são depositados no fundo do mar e se mantêm preservados no sedimento com o passar dos anos, ao analisá-los hoje nós podemos reconstruir a temperatura da época em que eles foram formados. A proporção X/Y seria então um proxy que nos permite reconstruir a paleotemperatura da água do mar.


Os componentes que se encontram preservados na amostra de sedimento marinho podem ser compostos orgânicos, inorgânicos, carapaças de organismos, pólen, pedaços de vegetação ou cinzas vulcânicas. Os proxies utilizados na paleoceanografia podem nos fornecer informações sobre parâmetros como temperatura, salinidade, massas d’água, produtividade marinha, concentração de CO2, aporte e tipo de vegetação terrestre. Tais proxies, quando analisados em conjunto, nos ajudam a reconstruir os mais variados processos ambientais, climáticos e oceanográficos, como por exemplo variações na camada de mistura, intensidade de correntes, precipitação continental, nível do mar e volume de gelo. A combinação de registros sedimentares coletados em várias partes do mundo nos fornece uma visão geral sobre mudanças na circulação termohalina, no transporte de calor global e no clima da Terra.


A maioria dos trabalhos de paleoceanografia foca na reconstrução da temperatura da água do mar. Os proxies de temperatura podem ser divididos em dois grupos: inorgânicos e orgânicos. Os proxies de temperatura inorgânicos incluem a razão entre os isótopos oxigênio-18 e oxigênio-16 (representada por δ18O) e a razão elementar o magnésio e o cálcio (Mg/Ca), que estão presentes na calcita das carapaças dos foraminíferos. O proxy δ18O se baseia no princípio de que a proporção entre o oxigênio-16 (mais leve) e seu isótopo oxigênio-18 (mais pesado) durante a calcificação dos foraminíferos varia de acordo com a temperatura, de maneira que o aumento da temperatura resulta na precipitação de calcita empobrecida em oxigênio-18. O δ18O também é um medidor de salinidade e um excelente medidor de volume de gelo pois o gelo estoca mais oxigênio-16 (mais leve), sobrando mais oxigênio-18 (mais pesado) nos oceanos e consequentemente na carapaça dos foraminíferos presentes no fundo do oceano. No caso da razão Mg/Ca, o aumento da temperatura é responsável por aumentar a incorporação de Mg durante a calcificação dos foraminíferos. Tanto o δ18O quanto a razão Mg/Ca podem também ser aplicados na reconstrução da temperatura a partir de registros de corais, pois estes também são formados por carbonato de cálcio.


Os proxies de temperatura orgânicos são baseados na capacidade de vários microrganismos de ajustar a estabilidade de suas membranas celulares às variações locais de temperatura por meio de mudanças nas estruturas de determinados compostos durante sua formação. Estas mudanças nas estruturas envolvem variações no número de insaturações ou de anéis em suas moléculas, que podem ser facilmente identificadas e quantificadas através de técnicas analíticas específicas. Dentre os compostos orgânicos preservados no sedimento marinho utilizados para reconstruir a temperatura da água do mar do passado estão as alquenonas (cetonas de cadeia longa com 2 a 4 insaturações) e os dióis de cadeia longa produzidos por microalgas, bem como os glicerol dialquil glicerol tetraéteres (GDGTs) produzidos por arqueias e bactérias.


Todos os proxies usados na paleoceanografia carregam incertezas que podem afetar a precisão das estimativas e causar uma má interpretação das variações ambientais. Por isso é importante reconhecer a limitação de cada proxy e ter em mente que não existe proxy perfeito. É essencial tentar combinar proxies independentes para a reconstrução de um mesmo parâmetro e observar se eles apresentam a mesma tendência. O impacto potencial das atividades humanas no clima presente e futuro aumentou o interesse em compreender o clima do passado. Uma reconstrução confiável e com boa resolução das variações climáticas do passado é essencial para uma melhor investigação e previsão do que nos espera no futuro.

 

Referências ou sugestões de leitura:


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Sobre a autora:

Oceanógrafa pela UERJ, com mestrado e doutorado em química pela PUC-Rio, e doutorado sanduíche na Alemanha na Universidade de Bremen e no Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha. Atualmente é pós-doutoranda no Laboratório de Estudos Marinhos e Ambientais da PUC-Rio, especializada na área de geoquímica orgânica marinha. Está sempre imersa no mundo dos lipídios e isótopos estáveis para compreender as fontes, transporte e destino da matéria orgânica, bem como sua relação com processos recentes ou do passado. Também possui experiência e adora se envolver com poluição marinha, com foco nos hidrocarbonetos de petróleo. É apaixonada pelas possibilidades de colaboração e troca de conhecimento entre todas as áreas da oceanografia, pois tudo está conectado e nenhuma área anda só. Os momentos de lazer se dividem entre praia, filmes, livros, música e, como boa carioca, gostaria que o carnaval durasse o ano inteiro.



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